quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O fotógrafo e a comissária de vôo

Em 2007 fui com o fotógrafo Maurício de Paiva a um evento em homenagem ao Centenário da Imigração Japonesa. Haveria uma apresentação de um balé, vindo de uma colônia japonesa no interior de São Paulo, e uma exposição de fotos sobre a mesma colônia.
Como nós estávamos desenvolvendo um projeto sobre o Centenário, achamos de bom tom nos apresentar para a fotógrafa. Maurício chegou gentil - às vezes ele é adoravelmente cavalheiro - entregou cartão, presenteou-a com uma revista, com um belo ensaio seu, explicou quem era, contou do nosso projeto, falou de seu interesse em conhecer a tal colônia. Para seu espanto, a moça, arredia, muito grosseiramente disse que estava cansada de ver suas pautas roubadas (!?).
Já no final da noite- depois do balé, batatinhas no palito e vinho branco- quando estávamos de partida, ele encontrou, numa solidão desamparada, a revista que trouxera para a moça sobre um banco vazio. Era um exemplar da Caminhos da Terra, com fotos suas sobre a pré-história da Amazônia. Lá, abandonada, esquecida, nem olhada. Chegamos perto da fotógrafa, que conversava com algumas pessoas. Vinhobrancamente motivado, ele a olhou bem sério e mostrou a revista. Disse que ela a tinha jogado fora. Surpreendida, ela tentou se desculpar, mas, antes que conseguisse, ele disse em alto e bom som, uma única palavra que soou como uma educada e merecida (com o perdão da Maria da Penha) bofetada: “amadora”.
A fotógrafa, na verdade, era aeromoça. A história eu não sei muito bem, mas é mais ou menos assim: nas folgas das viagens a lugares distantes, começou a fazer algumas fotos. Conseguiu até publicar algumas numa revista. Nas férias, visitava a colônia japonesa e, depois de quatro anos, tinha juntado material para uma exposição. Se as fotos eram ‘boas’, não importa. Ela, de fato, continuava sendo amadora. Porque não tinha postura profissional.
Um médico que compra um sofisticado equipamento e veste seu colete de homem bomba nos dias sem plantão, não é um fotógrafo profissional. O micro empresário que passa as férias num workshop na Chapada Diamantina, não é fotógrafo profissional. O estudante de publicidade que monta sua galeria do flickr com excelentes cliques, não é fotógrafo profissional.
Por mais que se fale em um ambiente competitivo, um profissional de verdade não hostiliza um colega que se apresenta amigavelmente acusando-o de ladrão. Não desvaloriza o trabalho alheio. Não se declara dono exclusivo de pautas. Profissionalismo se faz com comprometimento, ética e respeito.
Isto vale para manicures, fonoaudiólogos, carpinteiros, comissários de vôo. E para fotógrafos, mesmo que se seja uma profissão em que se permite a bizarrice de associar o nome da profissão ao predicado do amadorismo.


(P.S. o projeto que fizemos sobre o Centenário da Imigração Japonesa foi publicado em várias revista, como National Geographic, Planeta, Caminhos da Terra, Aventuras na História... E em julho de 2009 nos rendeu o primeiro lugar no prêmio Masey Ferguson de Jornalismo por um especial publicado na Globo Rural. Nunca mais soube da aeromoça. Imagino que ainda esteja sorrindo em três idiomas,enquanto serve “suco, refrigerante ou água”).

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Amazônia Antiga I (ponta de flecha)

Em 2002, quando o americano James B. Petersen encontrou uma ponta de flecha no município amazonense de Iranduba, soube que ela despertava novas e velhas dúvidas. Petersen, no entanto, nem teve tempo de ouvir a todas. Ele podia ter optado por ser neurocirurgião ou professor de literatura. Mas veio para a Amazônia brasileira investigar nosso passado distante. Com essa escolha, definiu não só sua vida, mas também sua morte. Em 2005, sentado à mesa de um restaurante na estrada que liga Manacapuru a Manaus, foi surpreendido num rápido assalto. E morreu ali, com a maioria das questões ainda na fila de espera e algumas respostas que não teve tempo de expressar.
Quando vejo de perto a herança que ele deixou, a ponta de flecha, emociono-me mais do que podia esperar. Datada em 8500 anos, ela é o item confeccionado por mãos humanas mais antigo que já foi encontrado na Amazônia. Cabendo na palma da mão, sua forma é simétrica, e suas bordas, afiadas. É feita de sílex, uma rocha translúcida, com pequenas manchas escuras no interior. De perto, percebe-se que foi lascada muitas vezes, em cortes leves, por mãos habilidosas. Parece tão intacta que faz crer que nem chegou a ser usada. Uma pessoa com melhor capacidade de análise, como o próprio Petersen, poderia ficar horas observando os detalhes de seu feitio. Ora, o que estou dizendo! Arqueólogos já estão há anos tirando respostas desse objeto que eu olho sem compreender bem. Penso que talvez tenha sido confeccionado para a caça. Ou para rituais. Para eles, ela pode ser uma chave que indica soluções a respeito da antiguidade da presença do homem, rastros de migrações, intercâmbios culturais. Para mim, ela é portadora de uma mensagem misteriosa, guardada durante milhares de anos. Uma a uma, as questões racionais vão saindo de mansinho, deixando espaço livre para a subjetividade. Ao alcance de meus dedos, está uma peça carregada de traços humanos, que fez parte da vida de uma pessoa real, de uma história perdida nas pastas arquivadas do tempo, esse senhor que governa a tudo e a todos. Sempre as águas vão e vêm? Em meus olhos, é tempo de maré cheia.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

“Pãos ou Pães, é questão de opinães” João Guimarães Rosa

O interfone toca. O garoto vem avisar: é dona Janira. A senhora recebe a notícia um pouco decepcionada, esperava que fosse outra pessoa. Num repente, como se tivesse se lembrado de algo, avança sobre o pacote de pães deixado sobre a mesa. “Vou esconder este pão, não quero que esta mulher coma”. Abre o armário rapidamente, enfia o pacote lá dentro, empurra a porta com veemência. Age com destreza inesperada para seus noventa e sete anos apoiados numa bengala. Neste instante, a mulher, dona Janira, entra. E a flagra nesta posição, o corpo largo inclinado para o armário, as mãos fechando a porta, uma expressão de quase susto que poderia delatá-la.
A cumprimenta sorrindo e diz, oferecendo uma sacolinha:
- Trouxe uns pãezinhos para a senhora, dona Lucinda.

A Senhora

No rádio, um brega paraense. A menina, nem gente quase, ensaia palmas e balança o corpo miudinho ao ritmo amazônico. Da letra, me esqueci. Mas, claro, falava de amor. A senhora diverte-se com a cena e a incentiva, ela própria surda a não poder ouvir a canção. Vejo, estremeço. Por um instante, a cena me parece uma trégua entre a sombra da morte que se aproxima e a luminosidade da vida que começa.
Foi a senhora quem me ligou. Disse com sua voz um tanto lúgubre, um tanto assoprada, que está muito cansada. Com muito sono. Mas tem medo de se deitar e não acordar mais. Dramaticidade lusitana. Digo para que ela não pense assim, mas sei que tem razão. Dona Lucinda. A morte me parece tão próxima, tão inevitável, como se alguém muito doente.
Vou vê-la, passo uma noite em seu apartamento. Medo, talvez, que ela tenha mesmo algum mal estar enquanto só. Vontade de ajudar com a presença da menina. Não sei.
Sei que me surpreendo ao ouvi-la falar do genro, da neta, da nora, da ‘preta’. O rosto duro, a fala dura. Repreende a conduta alheia com um orgulho infantil, como se adolescente ainda ignorante das voltas que o mundo da. A irmã bem me avisara que ela era rancorosa. A irmã... Quase tão velha, quase tão rancorosa.
Digo a ela, como se ela fosse jovem e eu tivesse a sabedoria da velhice, que já faz tanto tempo... Nas entrelinhas digo que não vale a pena tanto ressentimento, que o tempo é remédio e água, lava alma e trás a cura. Mas a resposta me deixa muda. “Nunca que vou esquecer minha filha”. Então, é seu entendimento, o rancor se faz justo pelo apelo do amor materno. Quero gritar “senhora, senhora! Ela vem, ela vem! A morte vem depressa! Não há mais tempo para depurar, para desgastar! Ela vem, senhora!”. Quero dizer a ela que não há mais horas para isto. Como no corredor da morte, quando vem o padre ouvir a última confissão, lembrando que aos arrependidos Deus trará perdão. Me surpreende que seja assim seu proceder.
Não tenho autoridade para lhe dar sermão. Quem poderia ter? Aos noventa e sete anos, a senhora percorreu caminhos demais, não há quem possa lhe falar de certo ou errado. Tento ajudar silenciando sobre os casos, não encomprido assuntos de mal dizer. Apenas mostro que me interesso mais por ouvir a história de sua vida. A morte da mãe, a madrasta, o namorado. A vida que valeu suas penas, que lhe moldou a pessoa que hoje é.
Mas há algo de estranho nesta relação. Habituei-me a pensar nas pessoas mais velhas como sabias e instrutoras. Mas esta, na verdade, desperta o que há de maturidade em mim, me obriga a ser delicadamente materna, como fosse eu a mulher experiente.
E com a menina, há em seus olhos uma trégua nos reclames e a fala dificultada conta que há um gato. Um gatão, olhe ali o gatão. A menina, pequenina, nina, não bem compreende. Mas seus olhozinhos atentos acompanham intrigados a senhora com interesse. Outra hora, a boca torta canta para que o bicho papão deixe o neném dormir sossegado. E suas mãos inchadas passeiam pelo corpinho enxuto de minha filha em cócegas que lhe arrancam gargalhadas. Pequena, pequenina, infante entregue em risos de carinho. Não a sabe velha, não a sabe doente. Não a vê bela ou feia. As duas apenas se entendem. Trocam afeto sincero.
Para mim, a senhora, é feita de mistério. Me abre um vinho tinto e, apoiada na bengala, me prepara o almoço saboroso. Um sem número de segredos. A representação viva, muito viva, de historias humanas entrelaçadas, de perdas e acúmulos, de assentamento e partida. Para mim, a senhora é como um róseo unicórnio, sentado num sofá de tecido verde escuro. Não a adivinho, não a creio. Apenas a vejo com olhos de ternura e despedida.


(Dona Lucinda faleceu dia 29 de setembro de 2009, aos 99 anos e 7 meses).