quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Pessoas que amei: Seu Zito, vaqueiro Roseano

Conhecer João Henrique Ribeiro, o menino Joãozito, o seu Zito, era parte do meu projeto de conclusão de curso, em que refiz a viagem que João Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro em 1952. Cheguei com o fotógrafo João Correia Filho, que Zito chamou de Xará, e a jornalista Patrícia Bonilha, a Margarida. E eu, já de cara, virei Chiquinha.
Citado por Rosa no livro “Tutaméia-Terceiras Estórias” como um jovem vaqueiro de inteligência aguçada, foi fácil compreender porque Zito agradou ao escritor: inteligência é uma coisa dificil de mesurar, mas me arrisco a dizer que ele foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Rápido, perspicaz e carismático. Mostrou o caderno com a viagem descrita em versos, que ele escrevia todos os dias, na hora do descanso, à luz da fogueira. Contou da comida que preparava na trempe para o grupo todo. E do ‘piriri’ que Rosa, desacostumado com a comida temperada na banha, teve nos primeiros dias. E de quando o escritor o convidou para ir embora com ele para a cidade grande estudar. E ele preferiu o ofício de vaqueiro.
Nos levou pra conhecer a Sirga, fazenda de onde a tropa tinha partido, e a Tolda, uma antiga fazenda incluída no roteiro. E ia falando do Rosa, com quem manteve um estreito laço durante toda a viagem, com intimidade. E de Manuel Nardy, transfomado em personagem da novela “Uma história de amor”, de “Corpo de Baile” (Manuelzão e Miguilim). Ah, não que ele tivesse ciúmes de Manuelzão! Mas havia uma lucidez na crítica que fazia ao colega de viagem, que se enlevou pela fama e companhia dos acadêmicos da Usp.
Nos deu janta e pouso. E contou da visita do fotógrafo Fernando Granato, que corria atrás de belas imagens para seu livro “Nas trilhas do Rosa”. O moço que chegou e encontrou o Zito na porta. O Zito que, caradepaumente, disse que não estava: mentiu que era um vizinho que estava apenas cuidando da casa. Fernando pediu água. E ele disse que não tinha gelada. Só quando o fotógrafo já ia embora, depois de ter tomado água morna e se decepcionado com a longa viagem em vão, ele o chamou e disse rindo: “Ei! O Zito sou eu!”. Contava e gargalhava, achando graça no urbano enganado pelo sertanejo. Falou também de Pedro Bial, que passou com eles uns dias enquanto fazia o documentario “Os nomes do Rosa”. “Gente boa, muito gente boa. Mas fuma muito!”.
Alguns meses depois, João Correia esteve lá novamente com outra jornalista, Giedre Moura. Quando eu voltei, em mais alguns meses, ele foi logo me chamando de lado e denunciando, enquanto apontava com o queixo para João, uma infidelidade: “Esteve aqui com outra! Uma ‘Giedre’”. No jantar, enquanto todos conversavam, ele se manteve silencioso na cabeceira por longos minutos. Até que, com uma voz rouca, disse arrastado: “ Gieeeeeeeeeeedre!”. Bateu a mão fechada no peito e completou a galhofa: “estou com uma tosse! Garganta arranhando...”. Era um moquele sexagenário.
Morreu aos 65 anos, pouco antes da “Semana Roseana de 2002” em Cordisburgo, terra natal de Guimarães Rosa, em que seria o homenageado. Sua esposa, miúda e tímida, o representou emocionada. E eu sofri como se ele fosse da minha família. Desta relação de amor distante, guardo a terceira visita que fiz, para uma reportagem para a revisa Gula. Ele, imponente, vestido bonito com a capa gaúcha e chapéu, deixando o braço afetado por um derrame ao lado da esposa, enquanto me abraçava com o braço saudável para a foto posada.
Me explicou como se faz um bom fogão a lenha, com o chão inclinado para conduzir o calor. Me levou ao açougue para escolher a melhor costela, preparou a “vaca atolada”. E contou da visita dos jornalistas da Globo Rural – Tostão e Ernesto de Souza. Enquanto Tostão proseava ao modo mineiro, Ernesto procurava frenético um bom lugar para a foto. Eu sei que gostou deles, mas falava de um jeito irônico, num despeito que eu sabia que era só graça.
Me fingindo de enciumada, perguntei:
-Para eles o senhor também fez comida?
Só para, satisfeita, ouvi-lo responder (olhos carinhosos postos nos meus, um sorriso leve no rosto escuro):
- Não, Chiquinha! Eu só cozinho pra você!

Um comentário:

  1. Lindo relato. Acho impressionante a profusão de histórias (ou estórias), interpretações, personagens, inspirações e pirações pós-rosianas. Tinha razão mesmo: "o sertão está em toda parte."

    Quero ler novas histórias...

    ResponderExcluir