segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Amazônia Antiga - a Lama

Depois de uma cansativa e frustrada caminhada pela mata em busca de um suposto sítio arqueológico, voltamos enfim à margem onde tínhamos aportado. Apenas para descobrir que a maré havia secado. Entre nós e nosso barco: lama. No começo, até que não foi tão difícil. Bastava levantar a perna bem alto, dar um passo largo, afundar o pé novamente. Mas os passos iam ficando cada vez mais pesados, e o sol mais ardido, e a lama mais funda. Quando ela já tinha engolido metade do corpo e o barco ainda estava a uns cinquenta metros de distância, percebi que a vida nunca havia me parecido tão difícil (nessa época, eu ainda não era mãe). Veio o desespero, a birrenta vontade de desistir e dormir na mata, à espera da cheia da maré. Mas uma olhada rápida nos mostrou que a margem, naquela altura, já estava tão distante quanto a voadeira. Ir em frente era a única opção. O que aconteceu dali em diante não sou capaz de explicar. Um impulso inesperado, um segundo fôlego, um não-sei-quê de força. E já estávamos exaustos dentro do barco, com alguns rapazes caboclos que nos olhavam sem entender e um pequeno jacaré, amordaçado, que não teve a mesma sorte de safar-se.
Algumas horas depois, já tranquilos, compartilhamos o jantar com uma família ribeirinha, sem vizinhos à vista. A casa é de madeira, construída sobre pilares, para a passagem da água nos tempos de cheia. Em cima da mesa, a luz fraca de uma lamparina compete com as chamas do fogão a lenha, onde a mulher prepara graúdos camarões, tirados há pouco da água doce, que vai servindo a todos (o jacaré já era).
Estamos bem em frente ao gigante Amazonas, no ponto em que ele se casa com o oceano Atlântico e cercados pela mata densa, distante muitas horas de barco da cidade mais próxima. À porta da casa, no alto da escada que leva ao solo, posso observar as crianças que se deliciam barulhentas e risonhas com o banquete singelo e o escuro absoluto que nos rodeia. Experimento compreender como é a vida dessas pessoas, tão isoladas do resto do mundo e, ao mesmo tempo, tão senhoras em sua solidão. Numa noite tão escura como essa, de pouca lua e muitas estrelas, não é difícil vislumbrar fantasmas de outras eras, visagens que caminham pela mata protegendo seus espaços sagrados. Mas não há medo. Só uma sensação de que a solidão é ilusória, de que, por todo os lados, guardiões espreitam. Vejo, aqui, apenas uma família de pai-mãe-e-filhos. Mas quem pode afirmar quantos pés de gente passaram por esse mesmo chão nos últimos milhares de anos?


Trecho do livro Amazônia Antiga, Arqueologia do Entorno, DBA Editora

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