segunda-feira, 22 de novembro de 2010

No caminho

A senhora vem numa cadeira de rodas. Falta-lhe a perna direita, amputada na altura da coxa. A esquerda está enfaixada e sua pele é ainda mais escura que o resto do corpo marrom. Penso com certa aflição que em breve terá o mesmo destino. Quero observá-la enquanto se aproxima de mim, mas sua filha me fita e me acabrunho com a seriedade de seu olhar.
Por aqui passam vários cegos. Um, dois, três... Cada bengala é um terceiro olho. Ou talvez o único. De longe, atento para a ponta das bengalas, esperando o momento em que falharão e o cego trombará com o obstáculo. Sem me envergonhar desse pequeno sadismo, imagino que todos olhem esperando a mesma coisa. Um deles esbarra de frente com uma parede, só então me sinto constrangida.
Mulheres. Jalecos. Cabelos. Batons. Sapatoc... toc... toc...
Aquela foi uma noite de sábado. Pendurado no retrovisor, um esqueletinho de plástico prateado balança seus ossos. O taxista tem uma morenice quase índia. Junto essas duas referências e ensaio perguntar se ele é mexicano. Mas me calo. Na ponta oposta do banco, o homem dorme. Seu corpo é grande e macio. Não sinto, mas sei que seu cheiro é leve e claro, como sua pele chuviscada de sardas. Insisto comigo mesma que deveria falar com o taxista. Mas ele não é simpático e fico tímida.
Hoje, vejo os carros. Preto, prata, preto, prata, preto, prata. Por que tantos carros são pintados apenas com essas duas cores? À minha esquerda, um convento. Em alguma memória de infância, me dizem que nesse convento se produzem hóstias. Em alguma lembrança da juventude, lembro da amiga que dizia comer sobras de hóstias, que sua mãe ganhava das freiras, enquanto assistia à televisão. Rebarba, a palavra exata.
Até quando serei eu? Há um cansaço em ser para sempre a mesma pessoa. Tenho preguiça da eternidade.
Cobrindo o morro, muitas casas inacabadas se põem uma ao lado da outra e da outra e da outra. Aqui e ali, algumas - bem poucas - recebem o luxo de uma mão de tinta. Azul, amarelo, verde. Lembram-me uma prateleira de farmácia, lotada de pequenas caixas de remédio.
No livro italiano, o autor descrevia uma cena onde um casal passeia por uma praia. Não muito longe, se avistam pinheiros. Fiquei atenta às personagens, incapaz de visualizar o cenário. Pinheiros numa praia me parecem um absurdo excessivo para minha experiência tropical. Mergulho no quente escuro e é em um desses abismos de água que o homem me encontra.
O sol apenas insinua sua chegada quando ele acorda. Agora, quem dorme sou eu. Desperto quando sua mão alegre toca o couro elástico e escorregadio do meu quadril, ainda molhado e salgado de mar. As sereias, fora da água, pedem colo. Minha intolerância em pedir ajuda é tanta que, sem nem abrir ainda os olhos, desenho para mim longas pernas morenas, para que possa escapar quando quiser.
O que não posso é ser só mulher. Enfio ávidas mãos dentro de mim e trago o que primeiro encontro. Enquanto a mão alegre me passeia, minha boca se abre e não me surpreendo com os miados. Aninho-me no peito do homem e ronrono. Seu peito é grande e macio. E seu cheiro é leve e claro como sua pele chuviscada de sardas. Amanheço num domingo de primavera.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Sala da Luz Vermelha

Era uma vez um lugar quase mágico, onde imagens eram reveladas. Para chegar lá, passava-se por uma espécie de portal, abertura através de negras cortinas, muitas vezes em zigue e zague. Lá dentro, tudo era igual e, ao mesmo tempo, diferente. Sabíamos que ainda estávamos neste mundo, mas não podíamos vê-lo como tal. Para começar, a luz. No espaço escuro, a única luminosidade era vermelha, como uma lua colorada numa noite quente. E os cheiros! Eram fortes, marcantes, diferentes dos cheiros que nossos narizes encontram nas ruas: muitas pessoas achariam repugnantes os odores químicos que tomavam o lugar. Como deve ser o inferno, repleto de enxofre. Mas, como explicar? Quem entrava ali por vontade própria, já na primeira vez se sentia inebriado com aquele cheiro. Hoje, tantos anos depois, ainda tenho guardado em algum ponto prazeroso de minha memória os cheiros deste lugar. Uma mistura perfumada de produtos que se diluíam em água, nas proporções bem calculadas, para que as imagens aflorassem no tempo certo.
No local mais sagrado deste lugar, um altar invertido, estava um equipamento onde um pedaço de filme negativo era introduzido e uma luz – a única que não era vermelha- ampliava sobre um pedaço de papel fotossensível um desenho pouco compreensível para os intrusos. E o papel era mergulhado em bandejas recheadas de líquidos. Então, magicamente, ia surgindo pouco a pouco uma imagem positiva. Ah, a primeira vez que uma pessoa vê isto acontecer é incrível! Do fundo da água, em pontos escuros que vão se transformando em linhas e as linhas em sorrisos e olhares e composições... Na verdade, era sempre emocionante, fosse a primeira, a décima ou a milésima vez. E lá se iam uma hora, duas, três, oito horas esquecidas do mundo real... Eram sempre horas de magia. Eu disse magia? Não, este processo era pura técnica.
O tempo exato de a luz queimar o papel, o tempo exato no revelador, o tempo exato de interromper... Tudo calculado segundo a segundo: um relógio preciso era presença obrigatória. Se possível, um temporizador. Claro, muitas vezes as coisas não eram como se esperava. A pessoa batia os olhos numa cena, mas errava a exposição. No negativo, memória e registro não se bicavam. Hoje, um pouco de habilidade em programas de imagem resolvem bem este problema. Mas, lá na terra da luz vermelha, a habilidade morava no jeitinho de conduzir a luz sobre o papel. Com os dedos quase fechados, formando um túnel para a luz passar, como um jato direcionado, queimava-se as partes que deveriam ser queimadas. E poupavam-se as que deveriam ser poupadas. Ou se movia a mão escondendo um ou outro pedaço do papel. Sempre em movimento, para não ficarem marcas. Quantas imagens não foram salvas com estas máscaras! Mas não pense que era fácil. Era preciso ter experiência e fazer muitos testes até chegar ao ponto certo. Era preciso, acima de tudo, uma boa dose de sensibilidade e intuição para chegar lá. Também existiam os negativos com pouco contraste... Ah, é só ir clicando nas setinhas da esquerda onde se lê contraste, né? Não, meu filho. A sala da luz vermelha, apesar do nome parecido, não é o Lightroom. Era preciso calcular abertura e tempo de exposição, tempo de revelador e interruptor. Era preciso fazer tudo de novo. Também se podiam usar os filtros de contraste. Fosse como fosse, haja experiência, paciência e sensibilidade para chegar ao resultado ideal.
A fotografia digital tornou o processo completo – da captação à ampliação- muito mais acessível. E isto não significa que qualquer um consegue bons resultados. Experiência, sensibilidade, paciência e outras habilidades ainda determinam quem é de fato bom profissional. Mas o que me pergunto é onde ainda existem estes lugares incríveis, onde um sujeito de bem podia passar dias tão felizes na companhia das imagens? Faculdades? Laboratórios comerciais? No quartinho dos fundos de algum fotógrafo à moda antiga? Quem ainda tem um sagrado ampliador P&B, bandejas para a química e aquela peculiar lampadinha vermelha?
Não faço coro aos saudosistas. Mas sinto pena pelos mais jovens que já debutaram em câmeras digitais e não tiveram a oportunidade de aprender um pouco mais sobre o trato com a luz. A refotografia: quando fotografia era novamente feita, desta vez positiva e no papel. Ah, a luz vermelha, a magia das imagens surgindo... E, claro, o odor delicioso que só a mistura de revelador, fixador e interruptor podem produzir. Este odor grudento que ainda sinto cada vez que penso num laboratório de revelação P&B. Oras, quer saber? Eu sou, sim, uma saudosista.
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Publicado originalmente no Fotocolagem. http://fotocolagem.blogspot.com/

domingo, 26 de setembro de 2010

Chiclete

Testou o e-mail alternativo: senha incorreta. Uma friagem escorregou pescoço abaixo, abraçou costas e peitos. Ele mudou a senha. Então soube que não adiantava mais continuar fingindo que não sabia. Depois de semanas de palavrório mal convincente, era hora de ter provas para esfregar na cara do safardana. Encerrar o ato.
Olhou a dica de senha: é de mascar. Oito letras. Tão fácil que ela compreendeu, quase compassiva, que tudo o que ele mais ansiava era que ela descobrisse. Na sua frente apareceu uma longa lista de mensagens. Todas de uma mesma pessoa: uma de suas mais queridas amigas. A vulva loira. Sirigaita!
Bastava ler a primeira. Leu todas. Um mês de paixonite descritos nos detalhes tão necessários aos apaixonados. O violão que ele tocava. E ela ouvia. O hotelzinho onde se acostavam. O restaurante onde comiam. O desconforto que ela descreveu, num muxoxo sentidinho, por ele ainda não ter passado a mão nos trapos e tirado a escova de dentes do armário. E a facada final: o convite que ele fazia para o aniversário do tio dali um mês.
Nem todas as declarações piegas de amor entre os dois, que se chamavam por diminutivos fofinhos, foram tão doloridas quanta a festa do tio Waldir. Pitombas! Como ele podia levar a sirigaita numa festa de familiagem reunida se ainda estavam casados? Há cinco anos casados! Por alguns minutos, o chão escapou. Na leveza do susto, que travou o estômago e provocou uma sensação de alheamento, não teve vontade de dizer palavra.
Copiou os textos de todos os e-mails trocados entre os dois e mandou para ele. No assunto, uma frase de amor qualquer. Nem uma palavra a mais. Fim do último ato.
De vez em quando, o tio Waldir dá as caras na sua lembrança. Gostava dele, bom sujeito.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Um Motivo

Estou na cozinha da nossa pequena casa de madeira. Vejo minha mãe -uma baiana que está há tantas décadas em São Paulo que já nem lembra que nasceu em outro estado- ao fogão. Ela está fritando grandes batatas cozidas, recheadas com uma fatia de mortadela: uma iguaria que, depois de adulta, fiquei sabendo que se chama “batata cansada”. Sei que bebemos tubaína. Aquela da garrafa de vidro marrom, que tinha no rótulo um desenho de frutinhas para mostrar que era sabor “tutti frutti”. Muitos fogos, muito barulho. E um cachorro vira-lata bem guaipeca, preto de patas amarelas, que, como a maioria dos cachorros da época, era batizado de Duque. Pela porta da sala, vejo meu pai, um funcionário público do baixíssimo escalão, e nosso vizinho eufórico. Acho que estão carregando bandeiras. Sei que vamos todos sair no nosso fusca cor de vinho, que tinha um adesivo do Fred Flintstone e era chamado de Canejão. Vamos nos juntar aos muitos carros que já buzinam nas ruas desta cidade periférica.
Mas lembro, sobretudo, da alegria. Uma tão grande alegria que não se podia explicar a uma criança tão pequena. Eu tinha, em 1977, apenas 4 anos e olhava os adultos encantada com sua euforia.
Poderia enumerar mais um grande número de razões. Mas esta pequena lembrança, da quebra do jejum de 23 anos (na verdade, foram 22 anos, 8 meses e 7 dias) sem título, escurecida pelo tempo como uma foto mal fixada, é suficiente. Este pequeno registro afetivo me basta para compreender porque sou corintiana. E porque sempre serei.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Trivial Simples: Carne de Porco à Edson Franco (ou como demonstrar amor próprio cozinhando só para você em plena segunda-feira)


Ingredientes

Um bife de coxão mole suíno.
Meio pimentão amarelo médio cortado em tiras
Meia cebola média também em tiras
Meio raminho de alecrim desfiado
Quatro ou cinco cogumelos franceses fatiados
Meia dose de aguardente composta com zimbro
Azeite extra-virgem
Sal

Preparo
Em uma chapa de ferro bem quente coberta com azeite, sele o bife dos dois lados. Polvilhe com um pouco de sal e deixe-o dourar. Quando estiver dourado, acrescente, na sequencia, o pimentão, a cebola, os cogumelos e, por último, o alecrim. Regue com mais um pouco de azeite. Vá mexendo cuidadosamente sem parar. Quando o pimentão estiver macio (mas ainda firme) e o bife bem dourado, desligue a chapa. Acrescente a aguardente.

Acompanha arroz branco, feijão carioca, salada de almeirão picadinho com azeitonas, meio pãozinho. E, claro, mais azeite.

Rendimento: uma porção
Tempo de preparo: meia latinha de cerveja bem gelada.
Avaliação: estou me amando muito hoje.




segunda-feira, 31 de maio de 2010

Robertina (ou mais uma estória de amor).

Robertina corria ladeira abaixo em direção à casa de uma família conhecida. Antes de chegar, porém, foi surpreendida com a presença de um rapaz. Sob uma grande árvore, ele retirava, com uma pá, porções de terra que jogava para o lado. Ela estacou em frente a ele, o olhou por um momento, e disse pausadamente:
- José Bittencourt, o que você está fazendo?
Interrompendo o trabalho, o rapaz respondeu:
- Estou construindo o caminho de nossas vidas.
Ela acordou em seguida, muito impressionada com o sonho, ouvindo o som de um motor longínquo. Chamou a mãe e perguntou que barulho era aquele, que ela nunca tinha ouvido. A mãe respondeu que era o caminhão dos Bittencourt.
Estamos sentadas uma em frente a outra, na cozinha. Ela tem um jeito sereno e enfático de falar e vai completando as idéias com gestos firmes, desenhando com o dedo indicador na toalha da mesa. Observo seu rosto já bem enrugado, seus olhos puxados, cabelos brancos apanhados num coque mal feito, seu ar de índia velha. No quarto, seu José. De regata branca puída e uma calça tão gasta quanto, ele brinca com a bisneta de seis anos, expressando o seu característico bom humor. Eles acabam de completar 60 anos de casados.
Na mesma semana em que sonhou com o noivo, Robertina o encontrou num baile. Nestes tempos, estes bailes da roça eram a principal atividade social para os jovens e muitos namoros começaram assim. Ela me contou que eles já se conheciam há muito tempo, mas que ele nunca tinha botado reparo nela. Neste dia, porém, ele disse ao irmão que estava cansado da vida de solteiro e que ia encontrar uma noiva no baile. Enquanto dançavam, ele pareceu notar pela primeira vez o encanto da moça de dezenove anos. Pediu-a em namoro. Ela, ao contrário, há muito esperava por esta oportunidade. Mas respondeu com astúcia feminina que era uma moça séria, não poderia dar uma resposta sem antes falar com a familia. A resposta? Somente no próximo baile.
Com um ar um tanto desgostoso, ela me conta que não foram décadas fáceis, que ele não foi exatamente um marido amoroso como ela gostaria. Muito séria, me confessa um segredo: houve um momento, até, com os filhos já crescidos, que ela chegou a juntar suas coisas para partir. Mas ficou. E foi construindo com José um caminho longo e sólido.
Há dois anos, liguei para sua casa, saudosa de me aproximar da sua sabedoria, sempre certa e tranqüila. É seu José quem atende. Me diz que é impossível falar com ela.
- A dona Robertina está no céu- me diz com um bom humor quase inadequado para a notícia.
Desligo o telefone sem me identificar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Maio

Zennoshin Shoji, 94 anos
Manaus, AM

Foi num mês de maio que Zennoshin Shoji conseguiu dar um dos maiores passos de sua vida: encontrou uma noiva. Uma proeza para quem pretendia partir do Japão para a Amazônia. Que pais aceitariam com facilidade deixar sua filha se casar e partir para tão longe? O jovem que alimentou desde a infância o sonho da imigração seguia os passos dos koutakusseis, grupo de estudantes de agricultura que se estabeleceram na região de Parintins, no Amazonas, na década de 30, cumprindo um acordo entre governos. Em 1937, enfrentou com bom ânimo os três meses de viagem, ao lado da esposa Tomoyo. Shoji, hoje com 92 anos, pisca muito os olhos e diz com seu bom humor característico: “Sabe, né?, casado novo, todo repleto e cheio de esperança, eu vim no navio namorando; era feliz demais apesar de ser imigrante!”.
Na província de Miagi-Ken, em Sendai, onde nasceu, a falta de recursos provavelmente o condenaria a uma vida de privações ou a emigração forçada para a Manchúria.
Mas quem disse que ele estava preparado para a lida na roça? Disposto a realizar seus sonhos, Shoji teve que aprender a carpir, plantar, colher. O foco inicial dos koutakusseis era a juta. A planta trazida da Índia, no entanto, não se adaptou com facilidade e foram precisos vários anos de pesquisa e trabalho até que, finalmente, ela se tornasse um negócio lucrativo e trouxesse grandeza para a colônia conhecida como Vila Amazônia. Escola, armazéns, templo e até hospital. Uma história de amor tão bonita quanto o casamento de Shoji se fazia entre Brasil e Japão, até que a segunda Guerra Mundial acabou com a Lua de Mel e tornou os dois paises inimigos. E os japoneses passaram a ser perseguidos. Muitos perderam bens. Muitos se perderam da família. Da Vila Amazônia, hoje restam poucas ruínas e o cemitério, onde muitos koutakusseis estão enterrados. Destes tempos, Shoji se lembra do dia em que apanhou de um policial com uma tira de couro de peixe. “Eu não entendia porque os soldados não gostavam de japonês, né?”.
Como se fizesse um balanço de sua própria vida, conclui que, apesar de todas as dificuldades, estava correto quando decidiu onde seus olhos rasgados veriam seus filhos crescer. Sentado em uma cadeira de trançado azul, enquanto dois cães brincam atrás da grade que nos deixa ver um quintal com palmeiras, seu Shoji mira o céu e busca palavras já prontas.Porque já sabe o que quer dizer, já sabe o que sente: “Eu sempre achei que a Amazônia fosse mesmo a minha terra”.

domingo, 25 de abril de 2010

Guaraná com formicida

A voz chamando no portão tinha algo de urgente e temeroso ao mesmo tempo. Ela o recebeu ali mesmo, em frente ao jardim, tendo rosas e cravos e dálias, como testemunhas. Não por desprezo, mas por medo que o sentimento que quase a sufocava a fizesse mudar de idéia. O homem sorridente, músico que amanhecia em bares entregue ao violão, estranhamente a esperava aflito. Tinha um ar decidido que quase lhe ocultava o medo. Não disse muito, apenas pediu para voltarem. Trazia na garganta um sem número de razões para isto, trazia todos os argumentos e todas as palavras de amor, tudo calado pela boca, mas dito por seu olhar de tragédia. Mas ela foi firme e negou com a cabeça o que mais desejava. Ninguém sabia, nunca ninguém soube, o desejo reprimido, a correnteza represada no seu gesto de negar. Foram poucos minutos, poucos gestos, poucas palavras. Tudo suspenso, tudo esperando pela explosão de desejos que a custo souberam barrar.
Ele partiu de cabeça baixa. Ela tentou manter a cabeça erguida. Em seu quarto, pensou ainda muitas vezes na angústia de esposa esperando o marido que só chega de manhã, embriagado, os filhos esperando pelo pai que se divertia com mulheres várias, a ausência maior que o aconchego de amante. Por mais que ele fosse aquele que mais amara, acreditava estar sendo sábia e, apoiada nisto, controlou as lágrimas que insistiam em se espalhar por seu rosto. Só se entregou ao choro quando vieram lhe trazer a notícia de que ele se matara. Guaraná com formicida.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Rio de Janeiro, gosto de você!

Há pouco tempo, num almoço entre amigos, rolou uma discussão do tipo ‘se você tem dinheiro, qualquer lugar é bom para se morar’. Pensei rapidamente e soltei: Eu, com muito dinheiro, me mudava para o Rio de Janeiro. Meu ex marido, que estava presente, me olhou um tanto pasmo e disse que não sabia que eu gostava tanto assim do Rio.
É agora eu podia entrar numa daquelas prolongadas discussões comigo mesma sobre como as pessoas convivem por um tempo, dividem a mesma casa, comida, banho, etecéteras e tais e ainda não se conhecem. Mas nem vou me arriscar.
O que eu penso é: será que eu não deixo claro o quanto eu gosto do Rio? Caraca mermão, shó porrrque eu fico imitando o shutaque dush cariocash? Porque implico com o hábito hediondo que eles tem de por catchup na pizza (eca!)? Pior, eu completo: também, com as pizzinhas ruins que eles tem... Sem contar que os garçons são antipáticos, muito diferentes do carismáticos garçons da paulicéia.
Mas a verdade é que eu amo esta cidade. Só para começar, tem mar. E montanha. E, apesar de eu estar sempre dizendo que os cariocas são malas, eu só conheço carioca CB (sangue bom. Ui!). De vez em quando fantasio que moro no Rio e aos finais de semana vou subir alguma pedra com amigos montanhista. De manhã, levar minha filha Helena para brincar na praia e, no fim de tarde, quem vai à praia sou eu. Na minha fantasia, morar no Rio é um aumento de qualidade de vida: eu vou praticar mais exercícios, me alimentar melhor, ser mais alegre. Sim, tem todos aqueles problemas que todo mundo sabe. Mas, e daí? Eu moro em Itapecerica da Serra, com um pé de açaí na porta, esquilo no quintal e um dos maiores índices de violência do país. Toda cidade há de ter seus prós e contras. E eu faria minhas malas rapidinho só para passar um final de semana no Rio, mesmo agora, em que a cidade ainda está de luto. E eu me sinto de luto também, entristecida como ficamos quando sofrem as pessoas queridas.
Bem, mas por que mesmo eu estou falando isto? Não é por causa da conversa entre amigos nem pela tragédia da cidade (que merece mais reflexão e profundidade do que estou sendo capaz no momento). É só porque eu recebi um e-mail da Monica Ramalho ( http://www.monicaramalho.com.br/) falando do Copafest.
Imagine! Um festival com aqueles músicos que só podem ser descritos com adjetivo clichês (monstro sagrado, gênio musical, fera!): Hermeto Pachoal, César Camargo Mariano, Marcos Valle, Chico Pinheiro... E no Copacabana Palace (que eu só conheço de fachada e pelo livro lançado pela DBA Editora). Melhor ir direto no site do festival para entender um pouco e concorrer a ingressos http://www.copafest.com.br/. De quebra, ouvir boa música online.
E lembrar que num momento em que paira tristeza e indignação, a cidade ainda tem fôlego para a arte, a boa música e gente. Resumindo: dá para não amar esta cidade?

( Eu também amo São Paulo, com força e fé. Mas esta é outra história)

terça-feira, 2 de março de 2010

No templo sagrado de Mindlin

Ele não chegou a notar minha existência. Mas eu notei a dele: nas duas oportundades que estive de estar perto de José Mindlim, fiquei quietinha observando sua figura peculiar.
A primeira vez foi numa semana Roseana, um evento que acontece todos os anos em Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa, na semana que seria de seu aniversário. Durante uma apresentação de teatro, em que um excelente ator conterrâneo de Rosa interpretava o texto de “Meu tio, o Iauaretê”, percebi uma movimentação exagerada das doutoras da Usp, sempre presentes ao evento. Autoras das mais complexas teses sobre a obra roseana, sorriam e se mexiam como mariposas em volta da lâmpada. De gentilezas em gentilezas, tentavam acomodar numa das cadeiras da platéia um homem idoso. Se o Guimarães Rosa não tivesse morrido há décadas, pensaria que era o próprio que viera receber as homenagens. Um pouco atrás, demorei para compreender o que estava acontecendo, quem era o visitante tão ilustre. Era José Mindlim.
Confesso que sabia quase nada e até hoje sei pouco sobre ele (descendente de judeus russos, empresário, contrário ao regime militar... bibliófilo).
Mas isto nao me impediu de ver a força que sua figura doce provocava. Na outra vez em que o vi, foi em sua própria biblioteca. Um jovem que estava fazendo sua tese de mestrado sobre a história de Robinson Crusoé solicitou a ele a autorização para incluir em seu trabalho uma foto do exemplar desta obra que Mindlim possuía, a mais antiga do Brasil. E ele, generosamente, autorizou que eu e o fotógrafo João Correia Filho fizessemos a tal foto. Para mim, que fui uma adolescente tão rebelde que matava aulas para me refugiar numa biblioteca, leitora compulsiva de todo tipo de livro que passasse em minha frente, aquele era muito mais do que um salão onde se guardam livros: era um templo. Não é uma coleção de livros qualquer, esta é a maior biblioteca particular do país e tem mais de 80 anos. Ficava em uma casa paulistana, toda cercada por um jardim de folhagens tropicais. E dois andares de livros, iluminados por vidros abertos para o jardim, com escadas de madeira e perfumados com o cheiro de papel raro. Ah, o cheiro da biblioteca do Mindlin! Fiquei ali parada, abismada com o meu próprio deslumbre.
Quem nos recebeu e entregou o livro foi sua secretária, que nos deu liberdade para trabalhar e circular pelo espaço. Montar tripé, escolher lente, ajeitar o livro, enquadrar, fotometrar... E eu imersa na sensação de estar num lugar sagrado, tocando aquele exemplar que chegava a assustar, de tão especial.
Então, ele chegou. Me lembrei na hora de uma entrevista que ele deu pra Regina Casé, em que dizia que as pessoas infantilizavam os velhos. Tinham o hábito de dizer que eles eram umas ‘gracinhas’. Lembrei e corrigi meus pensamentos: porque o Mindlin, sacerdote mor na sua igreja particular, era tão doce, tão suave, tão cheio de graça. Nos cumprimentou gentil sem saber o que minha timidez me impedia de dizer. E agora ele morreu. Um homem notável que se foi aos 95 anos, deixando um rastro de admiração, depois de ter dito que não era mais que um “guardião de livros”.
Os livros, doados para a Universidade de São Paulo, estão passando por um processo de digitalização para que fiquem a disposição também via internet. Mas sem a presença doce e sábia de Mindlin, perderam um pouco sua graça.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Quando as lulas não vêm

Todos os domingos, depois de comer o pastel da dona Rosa com garapa da barraca vizinha, atravesso a feira inteira, olhando para os dois lados e decidindo o que vou ou não levar para casa. Quando acabam as barracas de legumes e frutas, ainda restam mais algumas de pastel, a de temperos, a de carne e, por último, a dos peixes. Não costumo comprar peixes. Mesmo assim, dominicalmente insisto numa teimosia: vou até a última barraca. Olho os mariscos, espio o camarão, o cação, as vermelhas postas de salmão. Mas meu coração procura outra coisa. As lulas. Aprendi, com as moradoras da Ponta da Juatinga, em Paraty, que é no verão que a pesca da lula é abundante, que elas aparecem maiores e melhores. E o preço abaixa. Eu sei disto e continuo durante o ano inteiro obsessivamente passeando os olhos pela banca de peixe, só para ser surpreendida com o feliz dia em que as lulas estarão melhores, maiores e mais baratas. Para limpá-las, temperá-las, recheá-las com fatias de queijo e pedaços de banana, deitá-las numa caminha de molho de tomates e camarões. Para encerrá-las no forno até ficarem rosadas e macias, desmanchando-se quebradiças. E surprender quem as come com a leveza do sabor inusitado.
Então, hoje, acordei. Fevereiro se encerra, o verão também. Cadê as lulas do verâo? Passei o ano esperando e elas não passaram de umas poucas lulinhas chochas.
Agora, assisti na tv uma reportagem que, em total sincronicidade com minhas dúvidas, me respondeu à pergunta. Este ano, lulas, peixes e ostras debandaram. O El Niño e o aquecimento global deixaram o Oceano que nos banha cerca de 2 graus mais quente. O suficiente para que as ostras – coitadas, não podem ir embora- tivessem dificuldades de crescimento e os outros simplesmente evitassem nossa costa. Achei até um pouco mal educado da parte das lulas ir embora assim, por causa de apenas 2 graus, mas compreendi.
A questão, para mim, agora é outra: foi a primeira vez que o tão falado aquecimento global teve um impacto real na minha vidinha. Mesmo com todas as imprevisibilidades do clima, como este frio de dois edredons na minha cama, com toda a chuva, todas as teorias e campanhas... Tudo isto não era real o suficiente. Mas agora sim, compreendo de forma concreta que o aquecimento global vai atingir a todos nós. Eu senti a ausência das lulas no meu verão.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

23 motivos para se casar com uma Fotógrafa

Pois é... no texto anterior, nos comentários, recebi uma bronca: “Só existe por acaso homem tirando fotos nesse mundo?” . Não, Luzine, não são só homens...
Na verdade, sou eu quem tenho convivido com fotógrafos, muitos fotógrafos, nos últimos 14 anos. Mas quase todos homens. Só trabalhei com uma fotógrafa até hoje, numa única pauta (e não namorei nenhuma, muito menos me casei). Mesmo assim, foi bem fácil fazer a lista de motivos para se casar com elas: elas são maravilhoooosas! Eu só não vou colocar todos os 150 motivos que pensei em um único dia para não destoar muito da lista anterior. Então, lá vai:


1 Ela não vai ficar pegando no seu pé pra fazer uma foto bacana dela. Quando precisa, ela mesma faz.

2 Não precisa ficar com ciúme se ela aparecer com fotos dela mesma nua, em poses altamente eróticas, dizendo que não foi o ex namorado que fez, mas ela mesma: é verdade.

3 Fotógrafas tem os olhos voltados para o que é belo: são estetas natas. Então, mesmo que ela seja despojada e só use jeans e camiseta preta, será uma mulher atraente. Descondicione seu olhar e vai perceber que este cabelo sempre desarrumado lhe dá um charme especial.

4 Isto quer dizer que você, também, deve ter algo de muito belo. Mesmo que seja o desenho das sobrancelhas, o ‘incrível’ tom castanho de seus cabelos. Ou (ai-meu-Deus!) estas sardas nos ombros que ela acha “tudo”! Mesmo que sejam mínimos detalhes que nunca ninguém reparou antes, você vai ver como faz bem para o seu ego ser admirado.

5 Ir ao cinema vai ser uma experiência enriquecedora: ela vai falar do enquadramento, da luz, da combinação de cores do figurino com o cenário... não vai ser como aquela sua namorada que, depois de ver Tróia, ficou um mês repetindo (sobre o Brad Pitt): - Meu Zeus, o que que é Aquiles!

6 Ela não vai se importar de ir com você àquele restaurante muquifinho com toalhas de plástico, desde que – e só assim- a comida seja realmente ótima. Elas são muito exigentes, mas com o essencial.

7 Se ela for da turma do fotojornalismo, então, mais fácil: vai acampar, tomar chuva, dormir em colchão ruim, dividir pf... ainda vai dar risada e lembrar de algum perrengue que passou a trabalho. Porque, trabalhando como fotojornalista, com certeza ela já passou por coisa bem piores. Eu mesma, uma vez, peguei uma infecção intestinal viajando de barco no Pará, rapaz!, que... bem, deixa pra outro post.

8 Ela pode ganhar pouco, publicar pouco, ter poucos cliente, ser pouco reconhecida profissionalmente. Mas não vai ficar no seu ouvido se queixando que está no trabalho errado: ninguém vira fotógrafa por falta de opção, mas por gosto. Ela adora o que faz. (Já viu a bio de fotógrafa no Tweeter? “Sou uma apaixonada pela fotografia” “ a fotografia é minha vida” “Sou uma fotógrafa feliz, realizada com o que faço”... repara lá!)

9 Você não vai ter que esperar por horas enquanto ela se arruma para sair. (Geralmente) fotógrafas aprendem com a profissão a ter praticidade. Mesmo que ela faça o tipo “perua” (o que eu duvido muito), saberá fazer a maquiagem e colocar todos os adornos (se tiver) em, no máximo, 15 minutos. As unhas ela pinta no carro.


10 Se vocês forem viajar de carro, ela não vai encher o porta mala com um monte de sacolas carregadas de coisas inúteis. Tudo o que está na bagagem é útil e necessário, entendeu?

11 E você também não vai ter que carregar todas as tralhas pesadas que ela insiste em levar para um básico final de semana no Guarujá. Ela vai dizer: “pode deixar, o MEU equipamento EU levo”.

12 Ela não vai reparar que você tá olhando para aquela gata que passou. Na verdade, se a mulher for mesmo bonita, ela vai olhar antes de você. Ela é uma esteta, esqueceu?

13 Não precisa ter ciúmes se for você quem a flagrar olhando aquele cara maravilhoso que sentou na mesa ao lado. Ela é uma esteta, esqueceu de novo?!

14 O expediente já acabou faz tempo mas ela vai direto para o computador mexer num tal de LightRoom? Ela vai ficar lá tempo suficiente para se assistir a todas as reprises do Brasileirão. Então, aproveite, não há mulher que tolere reprise de futebol (nem as que gostam de futebol, como eu)

15 E por falar em futebol, também vai sobrar tempo para jogar com os amigos: ela pode ter um casamento, um ensaio ou uma pauta em pleno feriado nacional. E, saiba, nem vai reclamar.

16 Se ela varar a noite na frente do computador e não for com LR nem Photoshop, fique tranquilo: também não vai ser com uma traição virtual. Vai ser o Flickr, o Tweeter, o blog do Clício, o Olhavê, próprio blog... É trabalho, ainda!


17 Ela tem um encontro com colegas de profissão e você não pode ir. Ficou enciumado? Relaxe, onde há mais que 3 fotógrafos, não há possibilidade de paquera porque só há um assunto. E você sabe qual. Aproveite: se não estiver passando mais nenhuma reprise de futebol, vá jogar playstation. Mulheres também não toleram’homens adultos’ jogando videogame!

18 Ao contrário de muitas mulheres, a fotógrafa provavelmente vai gostar de assistir com você à sua coleção de filmes pornôs. Afinal, elas gostam de tudo o que se refere à imagem. O problema é que, quando você estiver bem empolgado, ela pode dizer: “mas por que será que eles usam esta luz tão dura, tão branca? Ficaria bem melhor se fosse uma luzinha lateral, meio difusa, um pouco mais quente... você não acha, amor?”. Fique calmo, amor, e mantenha o clima.

19 Se vocês resolverem fazer um casamento como manda o figurino –vestido, buquê, igreja- você não vai ter que se preocupar com o álbum. Deixe que ela decida tudo. Pode ser que ela chame seus melhores amigos e faça um álbum colaborativo, tipo “coletivo fotográfico”! E de graça! Agora, se ela vier com um papo de casamento imersivo em 360º, fotojornalismo de casamento ou seja lá o que, diga apenas: “acha ótimo, querida”. E não reclame, em hipótese alguma, do preço: corre o risco de ouvir um discurso de classe digno de Fidel Castro (sugiro economizar no aluguel da sua roupa ou nas garrafas de uísque).

20 Se vocês tiverem filhos, pode passar as festinhas de aniversário deles tomando cerveja lá no fundo com os outros adultos. Sabe aquela cena tradicional, do papai com a câmera na mão e a mamãe atrás do bolo com a criança no colo, gritando entre os dentes para não desmanchar o sorriso : “tá pegando o painel? Tá pegando ‘todo’ o painel?”? Você está dispensado!

21 E também não vai ter ouvir broncas porque, na festinha de fim de ano, você enquadrou todas as crianças, menos seu filhote. Ou porque no registro do natal você ‘cortou’ a cabeça da tia preferida dela. Fotógrafas compreendem estas limitações dos outros seres humanos. Quando querem fotos boas, elas mesmas fazem.

22 Você é fotógrafo também? Melhor ainda! Enfim arrumou uma companhia feminina (já tava pegando mal você sempre com aquele seu amigo, também fotógrafo, né?) para aquelas vernissagens semanais. Ela nem vai ficar reclamando da batatinha no palito escorrendo molho. E quando você disser: “Olha, aquele é o Rubens Fernandes Júnior”! Ela vai olhar na hora, sabendo de quem se trata. Isto é, se ela não o achar primeiro. Também vai ter alguém para olhar todas as suas fotos sem se cansar, dando palpites interessantes. E se você fotografa mulheres nuas, ela pode até sugerir alguns ‘ajustes’, mas você está livre de comentários despeitados do tipo “nossa, mas que peitinho caído que ela tem, né?”

23 Se o casamento durar até a velhice, ela não vai ficar ao seu lado reclamando que quer ver a novela do SBT enquanto você prefere ver o Datena. Pode ficar sossegado que o controle remoto é só seu: provavelmente ela ainda estará indo a eventos, congressos e palestras de fotografia. Hum... pensando bem, se o seu futuro é ficar num sofá vendo TV, saiba: muito antes disto, esta mulher já te deixou.

Obs. Vou dizer de novo: "não me processe que eu sou pobre". Case com uma fotógrafa por sua conta e risco!
Não, não é autopromoção: eu não estou querendo me casar!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

21 Razões para se casar com um fotógrafo

Ontem, o Clício Barroso colocou no seu blog as 50 razões para não se casar com um fotógrafo (http://www.clicio.com.br/blog/2010/50-razoes-para-nao-casar-com-um-fotografo/). Fiquei abalada. Se ter um relacionamento com fotógrafos é tão ruim assim, como consegui ter três? Masoquismo? Situações mal resolvidas na infância? Compulsão esquizofrênica? Eh... burrice? É claro que não dá pra responder assim de repente, vou precisar de alguns anos de análise. Mas, como a gente tá sempre tentando se justificar para os outros, criei a minha própria lista: 21 razões para dizer sim aos fotógrafos. Tá certo que eu não consegui 50, apesar de me esforçar, mas vou buscar uma ajudinha luxuosa de Carlos Drummond de Andrade: "Há vários motivos para não se amar uma pessoa, e um só para amá-la; este prevalece”


1-Fotógrafos, mesmo os mais tímidos, são sempre galantes. Faz um bem pro ego!

2-Seus pais nunca vão reclamar que você casou com um vagabundo: ele pode não ter emprego, mas estará sempre trabalhando.

3-E se ele for um fotojornalista que vai para guerras e coisas do tipo, vai conseguir respeito até daquela sua tia mais careta, que invoca com o jeito esquisitão que ele tem (tá certo que o cara demora meses para perceber que precisa aparar o cabelo e a barba, mas, afinal, qual o problema de alguém se parecer com o Capitão Caverna quando é capaz de arriscar a vida desta forma, né?).

4-Se fotógrafos não dão carona para o casal de amigos porque o banco do carro tá cheio de equipamentos, também não dão carona para aquele cara folgado, que vai insistir para vocês desviarem em quilômetros o caminho só para deixá-lo na porta de casa.

5-E como o porta malas também tá sempre cheio, você é obrigada a fazer malas exíguas, que levem apenas o essencial. Ótimo aprendizado para quando for viajar sozinha: vai poder carregar suas malas sem esforço.

6-Ir ao cinema fica bem melhor. Você aprende a observar outras coisas - além do roteiro e da fina estampa do galã - como movimentos de câmera, enquadramentos e iluminação.

7-Na verdade, tudo pode ter uma nova cara: o fundo da lata de cerveja, a silhueta da antena do vizinho, a gota de orvalho no brotinho da samambaia... você vai começar a botar reparo em coisas que nunca tinham tido a mínima importância na sua vida.

8- São melhores conselheiros na hora de escolher uma roupa do que as amigas. Elas sabem o que está na moda. Eles sabem o que realmente fica bem em você.

9-Esta regra também vale para os cabelos, a maquiagem e a cor do esmalte. Eu sei... o cinza arábia tá na moda e suas amigas adoram. Mas se ele disser que “parece que você não tem mais a ponta dos dedos”, dê o vidrinho recém comprado para a sua sobrinha modernete. Ele deve estar certo.

10-Eles gastam todo dinheiro em equipamento. Mas isto é melhor do que gastar em outras coisas, né? Imagina ser casada com alguém que gasta tudo na coleção de dvds de axé!

11-Fotógrafos são movidos à paixão. Se está com você é porque você é apaixonante, mesmo que eles nunca digam.

12-Também estão sempre procurando beleza. Então, seguindo o raciocínio do item anteriror, você deve ter uma beleza especial (isto eles até dizem). Mesmo que ele esteja cercado de modelos lindas, sensuais e – obviamente- mais bonitas que você.

13-Pense nisto também na hora em que o flagrar olhando descaradamente para outra mulher: melhor do que fazer uma cena de ciúme, é dizer (mentir?) para si mesma que ele só está olhando por uma questão estética (ele é um esteta nato!).

14-A maioria dos fotógrafos precisa viajar a trabalho, pelo menos de de vez em quando. E, a menos que você trabalhe com ele, sobra tempo para se encontrar com as amigas solteiras e ficar hooooras falando sobre aqueles assuntos que nós adoramos mas que evitamos na presença deles.

15-Fotógrafos são exigentes. Mesmo que o restaurante que ele insiste em ir seja um muquifo com toalhas de plástico, a comida deve ser ótima.

16- Fotógrafos têm sempre algo para te ensinar. Mesmo que sejam nomes esquisitos que mais ninguém conhece. Como Gurski. Scheimpflug. László Moholy-Nagy.

17-Se você acha importante manter o diálogo, fique tranquila: nunca vai faltar conversa neste relacionamento. Por via das dúvidas, mantenha-se informada sobre o mundo da fotografia: talvez o tema das conversas não varie muito.

18-Se você gosta de fotografia, tem uma ótima oportunidade de aprender muitas coisas observando sua postura profissional. Eu disse ‘observando’. Não fiquem na ilusão de que ele vai te emprestar lentes ou te ensinar a usar o flash: se o teu interesse é técnica, faça um curso. Ele, no máximo, vai querer te ensinar outras coisas, como a subjetividade narrativa cinematrográfica implícita nos enquadramentos de Sergei Eisenstein ou a importância da documentalidade dentro do contexto contemporâneo numa sociedade saturada pelo excesso de imagens cuja banalização da fotografia beira... Enfim, abra bem os olhos, balance a cabeça concordando (concorde sempre) e se matricule num curso o mais rápido possível.

19-Seus retratos serão retocados: acabou aquela estória de por seu cachorrinho no avatar do Twitter porque não ficou bem na foto. As pessoas podem até não te reconhecer, mas que você vai ficar bem, isto vai!

20-As fotos de corpo também podem virar uma montagem. Se ele puser o corpo de uma gostosona embaixo do seu rosto, guarde com cuidado. Se vocês se separarem, você pode usá-las num daqueles sites de ‘paquera’ quando estiver afim de ter outro namorado (e, se na hora de se conhecerem pessoalmente, ficar muito visível que você tá com vários quilos a mais, invente que está tomando um anticoncepcional que retém liquidos)

21-Se você conseguir manter o casamento até a velhice não vai ter que se lidar com um marido aposentado na poltrona assistindo Datena e reclamando dos jovens de hoje em dia. Fotógrafos não se aposentam. E estão sempre cercados pelos jovens de hoje em dia, que ficam pedindo opinão sobre seus próprios trabalhos. Ah, eles também não assistem o Datena: o cenário é feio.

Obs. Seguindo o raciocínio “não me processe que eu sou pobre”, deixo o alerta: não estou recomendando a ninguém que se case com um fotógrafo. Leia as duas listas e tome as decisões por sua conta e risco.
E, não, eu não vou mais namorar nenhum fotógrafo, ok?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Amazônia Antiga - Partida


Mais um barco se apronta para sair. Mulheres entram trazendo seus filhos e suas sacolas. E homens, carregando caixas nos ombros. Muita gente embarcando rapidamente, escolhendo o melhor lugar para armar a rede e depositar o aparelho de som, que garantirá a trilha sonora de todo o percurso. Alguns estão voltando para casa, outros vão a um batizado, há quem esteja deixando o lar para encontrar novos destinos. A viagem é longa, são dias pela imensidão do rio. Durante a noite faz muito frio, mas o dia é ensolarado e calmo, como a superfície plana da água. Nas margens, aqui e acolá, algumas casas de madeira, com a pintura azul desbotada, rodeadas de altas palmeiras. E a densa mata, muralha muito verde.
De vez em quando, uma pequena canoa se aproxima do barco. Crianças sobem pela corda. Trazem camarões secos ou açaí batido. Antes que todos possam reparar na mercadoria, voltam para o casco. Não devem se afastar de casa. Um trânsito incessante que se repete a cada dia, levando pessoas de uma grande cidade à outra, parando em outras menores, atravessando as estradas fluviais. Se para mim é uma novidade essa experiência, para o morador da Amazônia são caminhos habituais, rumos que se tomam desde tempos muito remotos, quando outros eram os que dominavam essa paisagem.
Olhar as pequenas casas isoladas e pensar que há quinhentos anos, quando os primeiros europeus trilharam o mesmo caminho em viagem de reconhecimento, boa parte dessa área era bem mais habitada que hoje é uma espécie de volta no tempo. Caminhar por essas margens há milênios podia significar o encontro com estradas, aldeias, plantações, línguas desconhecidas. Adentrar os sertões podia levar a outros povoados, densos agrupamentos situados a vários dias de caminho por terra ou água.
Cada vez que o barco aporta, as pessoas se acotovelam, céleres, para pisar novamente em terra, tão carregadas que estão com suas crianças e seus pertences. Há pressa, sempre há pressa. Próximo ao porto, muitas vezes há também um mercado. Ervas medicinais, frutos da terra, colheitas recentes, peixes de boa carne. E cestos e potes e panos e colares e pulseiras. Analisando vestígios arqueológicos, sabe-se hoje que, unindo toda a Amazônia, bem antes desses atuais mercados, já havia uma complexa rede de intercâmbio comercial. Peixe seco produzido por ribeirinhos, farinha torrada por sertanejos, ferramentas talhadas em rocha, ornamentos dourados que vinham de uma tal aldeia do ouro. Para lá e para cá, havia quem ia e vinha com suas embarcações lotadas de produtos comerciáveis. No estoque fluvial, seguia junto um pouco do saber de cada povo. Um diferente modo de curar uma doença, um trejeito de dança, um desenho na pintura da vasilha. E umas estórias que se espalhavam igarapés adentro, unindo diferentes povos em semelhantes devoções, mostrando que o fio da religiosidade percorria longos caminhos na disseminação do sagrado.

(Trecho do livro Amazônia Antiga, DBA Editora / Fotos Arquipélago de Marajó)

domingo, 31 de janeiro de 2010

Dia de Eleição, outra estória de amor

Era dia de eleição e eles se encontraram novamente. Como se houvessem combinado, iam votar no mesmo horário, tornando inevitável o encontro. Eram instantes tão curtos e tão intensos. Luiza já passara dos sessenta, seus cabelos prematuramente se embranqueceram e por trás dos óculos suas muitas rugas cobriam o rosto. Mas sua expressão, cada vez que o encontrava, ainda era o mesmo prazer juvenil. Ele apenas lhe acompanhava com os olhos, num misto de desejo e arrependimento, numa contenção de tantos anos frustrados.
Nos tempos dos bailes da roça, quando não passavam de adolescentes, se encontravam pelo salão, trocavam palavras de amor, deixavam seus corpos se tocarem quentes, sentindo o despertar do desejo. Luíza voltava para casa ansiando pelo próximo baile, tentando esconder de sua família suas aflições passionais. Mas alguém denunciou a paixão pelo mulato aos pais, que logo lhe arranjaram um noivo branco como ela. Proibida de conversar com ele, a moça pedia autorização para ir dançar em companhia do irmão mais velho e de Pedro, o novo namorado, gente de confiança da família. Lá pelas tantas, os braços do noivo se viam vazios, enquanto a moça se escondia pelos cantos em beijos e carinhos aflitos com o mulato.
A paixão clandestina seguia cada vez mais intensa e os dois já tinham prontos todos os planos para uma fuga. Até que Luíza adoeceu. Internada às pressas em um hospital da cidade, ficou dias fora, enquanto boatos corriam. O mulato era bonito, tinha muitas admiradoras. Uma delas lhe contou: Luíza tinha tirado um bebê. Estava para morrer pelo malfeito. Orgulhoso, deixou para trás todo o amor que sentia e, quando ela voltou, ele já espalhara que não queria uma mulher assim. E a moça, que se recuperava de uma apendicite, chorou por dias a dor da difamação, da perda, da traição.
Pouco tempo depois se casou com Pedro. Durante quarenta anos, ele foi o melhor marido que uma mulher podia desejar. Tiveram quatro filhos e ele se dedicava à família com um amor incondicional. Bastava ela chegar do trabalho e ele já ia para a cozinha lhe preparar um lanche, dizendo-lhe que descansasse um pouco. Corria de um lado para outro lhe fazendo pequenos cuidados, pequenos carinhos. Foram quarenta anos de uma relação tranquila, baseada no afeto e na confiança. Mas, toda vez que tinha eleição, Luíza e o mulato se encontravam. E seus olhos se queimavam de dor e desejo, como se ainda fossem jovenzinhos num salão de baile, descobrindo nos corpos colados a sabedoria dos amantes eternos.


(obs. esta é a minha versão para a estória que dona Luíza me contou há muitos anos, ainda pensando no amor que não pode viver)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Presente: Neruda



Me diga, a rosa está nua
ou tem apenas esse vestido?

Por que as árvores escondem
o esplendor de suas raízes?

Quem escuta os remorsos
do automóvel criminoso?

Há alguma coisa mais triste no mundo
que um trem imóvel na chuva?

( Esta semana, 'ganhei de presente' este poema de Pablo Neruda, do "Livro das Perguntas". ´Brigada!)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cuidado, frágil !



Na semana passada, numa das maiores chuvas dos últimos dias, choveu tanto aqui em Itapecerica – depois eu soube que algumas casas tinham desabado!- que minha casa não deu conta. Pela porta dos fundos, começou a entrar água. E no banheiro, mesmo com forro, começaram a escorrer alguns filetes de água. Isto já era suficiente para me ocupar com o rodo. Então vi, na parede do meu escritório, a água descendo felizinha, até a caixa de luz. Subi numa cadeira e vi, aterrorizada, por trás do armário de livros, os disjuntores todos molhados, pingando a água que caía. O que eu deveria fazer? Desligar os dijuntores? Enxugá-los? Conter a água que descia? E se desse um curto? Se eu levasse um choque? Com um pano, na ponta dos pés na cadeira, tentei manter a parede seca enquanto observava os objetos sobre o armário. Minhas cestas indígenas, vindas do Maranhão, uma galinha de cerâmica, ganha no Ceará, outras galinhas, do Jequitinhonha, um diploma enquadrado de finalista do Prêmio Caixa de Jornalismo. Me lembrei que a água continuava entrando pela porta dos fundos, exatamente no extremo oposto de onde eu estava. Então fiquei num vaivém: rodo na porta, pano no escritório. No caminho, minha filha no sofá da sala. Cada vez que eu passava, uma solicitação: “mãe, põe desenho”, “mãe, me dá água”, “mãe, me dá um leitinho”... rodo, pano, desenho, rodo, pano leitinho...
Desgraça pouca é bobagem: nestas horas de emergência, é incrível como todos os pequenos problemas afloram. Vão aparecendo um a um, perfilando-se como uma tropa à espera da revista. E eu fui revistando-os. Se eu tivesse com mais dinheiro, já tinha feito a varanda e a água não entraria pelos fundos. Se não fosse a crise, eu teria mais frilas e não estaria sem dinheiro. Se eu não fosse a única responsável por minha filha, ela não me solicitaria tanto. Se o pedreiro não tivesse errado na hora de por a caixa dágua, não teria deixado esta falha no telhado. Se eu fosse menos dispersa, já teria inventado um jeito de bloquear a porta. Se eu não estivesse sempre tão sobrecarregada, não seria tão dispersa. Se eu não estivesse sozinha, não precisaria resolver tudo de uma vez. Então, por um segundo, pensei que seria bom estar casada e que solidão é, no fundo, não ter com quem dividir as responsabilidades. Mas foi um segundo só: no seguinte já me lembrei que nenhum dos meus ex maridos tinha habilidade com estas coisas práticas (ai, esta minha queda por pseudo-artistas-intelectualóides) e ter um marido não significava, necessariamente, estar com alguém que saberia resolver. Olhei pro meu diploma de prêmio de jornalista e pensei que melhor seria ter um diploma de eletricista, como minha irmã. Ufa!
A verdade é que estas situações expõe o tamanho de nossa vulnerabilidade. Vou tentar explicar com uma metáfora um tanto tosca, pulando do micro (minha vidinha) para o macro (o resto do mundo): o grande choque do atentado de 11 de setembro não foi a queda das torres nem o número de mortes ou a ousadia dos terroristas. Foi a revelação da grande vulnerabilidade dos Estados Unidos. Claro que já se sabia que o tão afamado poder deste país já se tornara uma falácia, mas, a este ponto? Nem CIA nem FBI tiveram como impedir? E o Bush, escondido durante horas? Meu irmão diz que o século XXI começou naquele momento. Pode ser: a ordem mundial não poderia continuar como antes depois disto. Mas, voltando a 'I, Me and Myself', uma chuva exagerada me pôs, em poucos minutos, cara a cara com todas as coisas que andam me incomodando. E eu me senti tão desamparada, tão sozinha, tão... frágil!
Mas, ao que me lembre, Deus prometeu que não acabaria com o mundo novamente através da água. E a chuva foi ficando menos agressiva, mais leve, quase gente boa, até transformar-se num barulhinho bom sobre o telhado. Deitei ao lado de minha filha e fiquei agarridinha com ela.
Sentindo esta doçura tão perto de mim, fui lembrando seus primeiros meses, seus primeiros dois anos. E todas as imensas dificuldades que passei nesta fase. Não só a adaptação à realidade de ser mãe, mas as circunstâncias de nosso entorno que não eram muito favoráveis. Sem dúvida, o período mais difícil e dolorido da minha vida. E agora estávamos aqui, deitadas juntinhas no sofá, na casa que estamos construindo, no novo caminho que estamos seguindo, na vida que estamos criando juntas. E o inferno ficou para trás, anotado num diário que eu nem leio mais, numa gaveta que não preciso mais abrir. Vivido, vencido e superado.
Frágil, eu? Ah, tá.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Insulina (uma estória de amor)



Uma das coisas que marcou a minha infância, foi a diabete do meu pai. Ela norteava boa parte do cotidiano familiar, como os horários rígidos para as refeições, o pouco açúcar no café que minha mãe preparava e os lanches obrigatórios durantes as viagens. Esta parte dos lanches se tornou uma das minha preferências gastronômicas –se é que se pode chamar rocambole Pullman de goiaba de gastronomia. Todas as vezes que íamos para o litoral, pela Br-116, parávamos no mesmo ponto da Estrada da Banana, em frente à mesma árvore, e comíamos rocambole com um pouco de café. A intenção era evitar que ele tivesse hipoglicemia, já que tomava doses diárias de insulina. E eu, ainda tão pequena, ansiava pela árvore e pelo recheio vermelho e branco, de goiabada com chantili, uma mistura tão perfeita quanto era para mim unir um lanche à proximidade da praia. Mas ainda mais marcante eram as injeções matinais.
Todas as manhãs, invariavelmente, minha mãe fervia a seringa de vidro numa caixinha de metal, levada diretamente ao queimador do fogão. Me lembro ainda do ruído da água fervente e da imagem das bolhas pululando ao redor da seringa deitada. Era sempre de manhã bem cedo, com a cozinha clareada por uma luz natural ainda difusa, e o rádio ligado em alguma estação de notícias. Eu observava calada minha mãe preparar a seringa, introduzir a agulha no vidrinho de insulina, atravessando o lacre de borracha, puxar o líquido, expelir uma gotinha para garantir que não ficaria nem um pouco de ar e se aproximar delicada de meu pai. Ao mesmo tempo, podia ver quando ele levantava a manga da camiseta, expondo um braço magro e forte, bonito e moreno como ele sempre foi. Então se virava para minha mãe, oferecendo seus músculos com um ar sereno no rosto. Eu mantinha meu olhar fixo até o momento em que minha mãe o tocava com uma mão, com a seringa já pronta na outra. E desviava depressa o olhar, com a aversão eterna que tenho por qualquer tipo de injeção. Poucos segundos depois, via minha mãe esfregando o algodão e meu pai abaixar a manga. Um ritual amoroso que se repetiu por quase 25 anos, interrompido repentinamente pela morte prematura de meu pai, um dia depois de chegarmos de mais uma viagem ao litoral.
Esta lembrança se fixou na minha memória como um incansável ritual de amor. Era o símbolo diário da simbiose afetiva encenada por décadas por meus pais. Um modelo amoroso doentio, onde ela representa a esposa devota e ele o homem bonito que carrega uma vunerabilidade oculta. Até hoje, ela fala dele com um olhar resignado que não esconde paixão. Até hoje, me lembro dele como este homem bonito que, apesar da aparência forte, necessitava de cuidados. Um modelo que, adulta, rejeitei. E, sem notar, repeti.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Mulheres de Verdade


Uma Mulher de Vestido entrevista Mônica Canejo, a fotógrafa que realizou ensaio erótico com Barbies:

UMDV As Barbies não têm celulite, não têm pneuzinho, não têm flacidez e estão sempre sorrindo. Elas são o ideal da mulher atual?

MC Elas representam um padrão de beleza buscado por muitas mulheres do mundo. Um padrão que a mídia exaustivamente nos mostra todos os dias. Mas, qual é o preço deste ideal? Para manter este corpo, elas não comem. Pelo menos eu nunca as vi comendo. E o peitos, talvez seja fácil perceber, não são naturais, são sintéticos. Não que eu as esteja criticando. Só estou questionando se todas as mulheres devem ser assim também.

UMDV Acho que esta questão tem sido mais discutida ultimamente na mídia. Como no caso da modelo Filipa Hamilton que se queixou há tempo por sua imagem ter sida manipulada para que ela parecesse mais magra... e ela já era praticamente uma Barbie, né?

MC Pois é... mas eu acho que esta questão vai além. Algumas revistas estão começando a publicar fotos com modelos menos magras ou até com não modelos. O que, para mim, é só uma estratégia de marketing. Porque então vamos passar a ver que as moças mais cheinhas são bonitas. Pronto! Todo mundo vai ter que se enquadrar novamente. E as magérrimas é que vão fazer regime de engorda.
O que eu quero dizer é que não se trata de ser magra ou gorda. Alta ou baixa. Loira ou morena. Trata-se de estarmos sempre lidando com padrões de beleza femininos excessivamente rígidos. As próprias mulheres se cobram, e o resto da sociedade também cobra, para estar no padrão. Eu me lembro que nos anos 70 e 80 era bonito ter peitinho. A partir dos 90, virou moda os peitões. E a mulherada correndo atrás dos cirurgiões plásticos, ora para diminui ora para aumentar.

UMDV E você é contra a plástica?

MC Nem contra nem a favor, acho esta uma questão muito pessoal. Eu não faria, mas tenho uma amiga que colocou uma xícara de silicone em cada lado e está super feliz. O que eu questiono é esta banalização da plástica. Você vê outdoor anunciando cirurgias estéticas em 36 vezes, como se fosse um computador Positivo das Casas Bahia. Mas é um procedimento cirúrgico como qualquer outro, com todos os riscos que isto envolve. E as pessoas se arriscam muito facilmente para se sentirem incluídas.


UMDV Já que você usou a palavra inclusão, gostaria que você falasse um pouco sobre a participação da Teresa neste ensaio...


MC Ah, a Teresa! A Teresa é uma jovem muito bonita que, num acidente doméstico*, perdeu as duas pernas. Isto não a impediu de manifestar sua sensualidade. Ela está em praticamente todas as fotos, porque é justamente a mais expressiva das três. Ela está sempre com um olhar sereno e, ao mesmo tempo, um leve sorriso. Eu diria até que ela é a que tem mais cara de ‘safada’ (rs). Neste caso acho que não estamos só falando de inclusão social, mas sexual também (rs).

UMDV No caso, inclusão a três! Com isto você estava pensando em também questionar os padrões de sexualidade?

MC Como...? Ah, sim... claro. O modo como uma sociedade se manifesta sexualmente é bastante representativo de seus valores. Então eu quis mesmo questionar o pensamento básico da heterossexualidade monogâmica.

UMDV Por isto não há a figura masculina neste ensaio?

MC E por que temos sempre que nos render à figura masculina? Sempre este padrão patriarcal machista? Quando as mulheres terão espaço para se expressarem sem esta dependência do homem?
Bem, também porque não tinha nenhum Ken lá em casa... Sem contar que o Ken sem roupa é muito feio, parece um boneco!


E como foi o trabalho com as modelos?

MC Além da Teresa, estavam também a Clarice e a Summer. Puxa, elas são muito disciplinadas. Algumas fotos demoraram bastante para serem feitas e elas se mantinham absolutamente imóveis. Sem contar que atendiam a tudo o que eu pedia, numa boa, sempre com um sorriso nos lábios, muito concentradas. E com um ótimo entrosamento entre elas. Principalmente entre a Teresa e a Summer, há uma química entre elas... A única dificuldade que tive foi que, em alguns momentos, a imagem ficaria com uma atmosfera mais íntima se elas fechassem os olhos. Mas, tudo bem, a gente também tem que compreender as limitações individuais.

UMDV E elas gostaram do resultado?

MC Muito! Elas acharam que ficou “bastante sensual, sem ser vulgar”.

UMDV Sabe que, agora que você levantou todas estas questões, eu confesso que não tinha pensado em nada disto. Desculpe-me se te subestimei, mas achei mesmo que sua intenção era mais lúdica, compreende? Achei que você estava só brincando quando resolveu fotografar as Barbies da sua filha.

MC Cá entre nós, só estou falando estas coisas para aproveitar que este assunto ta na moda e parecer um pouco mais engajada. Esta história de fotografia como instrumento de transformação social... sabe? Quando eu fiz as fotos, tava só achando muito engraçado. Mas isto você corta, tá? Deixe as pessoas pensarem que eu sou inteligente.

UMDV Agora, mudando um pouco de assunto, você não acha que esta entrevista pode ser um sintoma de algum tipo de distúrbio? Não leve a mal, mas me parece um tanto esquizofrênica, não é?

MC Não, acho que não. Só estou tentando chamar um pouco a atenção. Em todo caso, se você quiser, posso conversar sobre isto com a doutora Cristina.

UMDV Quem é a doutora Cristina?

MC Oras, é a sua psiquiatra! Quero dizer, a minha!



terça-feira, 12 de janeiro de 2010

São Luiz do Paraitinga



foto Eduardo Canejo

Uma pequena tristeza



Ontem, voltando de São Paulo para Itapecerica, passei por alguns trechos alagados. Pequenos lagos formados em meia hora de chuva que já interditavam a Régis Bittencourt. E mais chuva que caía sem parar, como tem sido há praticamente um ano.
Na verdade, tenho vários textos que gostaria de colocar neste blog. Quase todos sobre amenidades, futilidades e besteiridades. Mas tem uma sombra de pequena tristeza que vem me perseguindo nestes dias. Tenho me mantido informada sobre as enchentes dos últimos dias, mas evito ler detalhes das notícias. É um novo hábito que estou adotando: sempre me abalo demais com este tipo de assunto, então evito me aprofundar. Mas desta vez não pude escapar. Meu irmão, que trabalha num órgão ligado ao Condephaat, esteve sexta-feira em São Luiz do Paraitinga com um grupo de técnicos. Pessoa alegre, de ótimo humor, chegou em casa no sábado visivelmente abalado. Impressionado com o tamanho da destruição. Vi seu semblante cansado falar sobre pessoas que perderem tudo, de casas alagadas até o segundo andar, de roupas penduradas nos fios elétricos como se estivessem num macabro varal. Carros e eletrodomésticos tombados sob os destroços de igrejas seculares. E da fuga das pessoas, de suas casas para uma escola, da escola para a igreja, enquanto a água ia subindo, derrubando tudo no seu caminho ascendente. Ele não conheceu a cidade antes e agradeceu por isto. Seria muito dolorido presenciar este cenário que lhe pareceu de guerra depois de ter visto de pé as construções, testemunhas de uma longa história. Por outro lado, no mesmo dia falei por telefone com minha irmã, que morou por dois anos em São Luiz. E que há dias tentava desesperada falar com seus amigos de lá sem conseguir. Ela agradecia não ter visto a bela cidade agora, transformada em escombros.
Eu, no meio destas duas angústias, sei que isto é muito pouco perto da dor de quem morava na cidade e que agora se encontra desabrigado, buscando força para enfrentar a reconstrução de sua vida. No ônibus, vendo os riscos da chuva que caía triste no início da noite, fiquei triste também, com este pequeno peso das tragédias que nos cercam a todos. Há um motivo maior para elas acontecerem? Uma lição? Um aviso? Não vou procurar estas respostas, mas estou convencida de que uma bonita história de superação já começa a ser escrita.


Me sinto um pouco patética em me dizer triste e não fazer nada para ajudar... vou pelo menos divulgar o endereço de um projeto de pessoas que estão, de fato, fazendo alguma coisa: http://projetoenchentes.radioramabrasil.com/sobre/

As fotos são todas do meu irmão, Eduardo Canejo. Ou simplesmente Canejo, como todo mundo chama.







fotos de Eduardo Canejo

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Dia do Fotógrafo: os preferidos

Há os professores. Têm sempre alguma coisa pra dizer. Não que eles achem que sabem mais: eles, de fato, sabem mais. Não sei dizer o que, mas é alguma coisa que escapa à percepção das outras pessoas e que eles pescam rapidamente. O melhor é que compartilham. E vale ponhar reparo no que eles dizem, costumam estar certos.
Além deles, os meus ‘preferidos’ são os mais velhos. Alguns aprenderam a fotografar em câmeras que nem tinham fotômetro. E agora estão aí, debruçados nos computadores, mexendo em programas de tratamento de imagem da mesma forma que aprenderam a medir a luz ‘no olho’. Não só testemunharam como fizeram parte efetivamente das mudanças qeu a fotografia vem passando nas últimas décadas. E nunca se aposentam: estão sempre fazendo alguma coisa nova. É como se os equipamentos ficassem obsoletos, mas eles não. Tem um ditado que diz que cachorro velho não aprende truque novo. Fotógrafos aprendem. Mantêm um perene interesse em aprender. E têm sempre tantas coisas pra contar que sou capaz de conter minha tagarelice e ficar só ouvindo, por horas, encantada com o que eles podem ensinar. Também já perderam o deslumbramento dos mais jovens, mas não perderam a paixão.
Aliás, todo fotógrafo - e agora eu não estou generalizando a esmo, é fato - é um apaixonado. Nunca conheci um que tivesse entrado na profissão só porque era vontade da família ou porque passou num concurso da prefeitura. Do fotodocumentarista que se embrenha por meses na floresta amazônica querendo pegar malária ao fotógrafo de casamento que chama suas clientes bonitinhamente de ‘minhas noivinhas’. Eles amam fotografar, dá para perceber só pelo jeito com que seguram as câmeras. E, quando em ação, têm um brilho nos olhos que até confunde quem está por perto. Alguns são tímidos, inseguros. Outros são espalhafatosos, exibicionistas. Uns são rústicos. Outros sofisticados. Mas nenhum é ‘morno’. É esta intensidade indisfarçável que os torna tão atraentes e, até, populares (ou vocês já viram algum protagonista de cinema que era despachante? Mas, fotógrafos, de “Blow Up” a “Antes da chuva”, tem mais de uma dúzia de filmes). Talvez eu seja suspeita (sim, eu sou absolutamente suspeita) para dizer, mas eles costumam ser apaixonantes. Me lembrei disto quando li no blog do Ayrton (http://ayrton.com/360/) a descrição do dia em que o helicóptero caiu na favela .... ele contando como ficou sabendo, da correria, da emoção. Pronto, me apaixonei pelo Ayrton! E por todos os fotojornalistas de novo. Tá, eu prometi para minhas irmãs e amigas que nunca mais vou namorar um fotógrafo. Estou cumprindo a promessa. Mas, gostar deles eu posso, não é? Eu simplesmente não consigo deixar de admirá-los. No fundo, acho que até os cotoveleiros, quando não estão cotovelando ninguém, devem ser interessantes (hum... talvez eu devesse ter dado uma chance pro cara da escada...). Então, é isto: feliz ‘dia dos fotógrafos’!

Dia do Fotógrafo: Tralhas

Tem também os fotógrafos que negam o flash. Não usam porque acham que a luz que está é a luz que deve ser usada. Alguns têm discursos bacanas. Outros pecam um pouco. Mas eu conheci um, gente boníssima e excelente profissional, numa viagem pelo Jequitinhonha, que dizia que até usou flash por um tempo mas não gostou. Preferia fazer as fotos com a luz que estava presente na cena. Imaginei que ele era um ‘purista’, apegado à luz natural. Então, na hora de sair para ir fotografar umas pessoas, ele pegou suas tralhas. Bolsa com as câmeras e lentes, tripé e... uma gigantesca luminária de luz contínua. Pois é, ele não usava flash, mas viajava carregando um monte de equipamento de estúdio. O engraçado foi na hora de ir embora, quando ele pegou o onibusinho que ia de Chapada do Norte para Diamantina. Foi preciso mobilizar todos os recém amigos – todos fotógrafos- para ajudá-lo com a bagagem. Compridas bolsas, lotadas de tripés e lâmpadas e etecéteras. Mais bagagem para uma semana do que eu levo para um mês.
Por falar em bagagem, é outro item curioso com relação a fotógrafos. Carregam tanta coisa! Conheço um que levava a fralda da filha (de pano e limpa, claro). E outro que não saía de casa sem levar vários livros, várias revistas, mapas e uma infinidade de outras coisas que era óbvio que ele não ia ter tempo de usar. E outro que, numa viagem a trabalho, foi barrado pela segurança do aeroporto na hora de passar pelo raio x. Porque além da câmera e de todas as lentes, filmes, filtros, flashes, caixinhas e caixonas, ele tinha na bagagem de mão duas chaves de fenda e dois estiletes. Mas não eram duas chavinhas de fenda, daquelas de relojoeiro, boas para emergências com o equipamento. Eram duas chaves enormes! E dois estiletes enormes (e por que dois?)! Ainda bem que estava no Brasil, porque em qualquer outro lugar ia ser difícil convencer que não era um terrorista ("Não, não...eu não vou fazer a comissária de refém, 'insh Allá' a minha barba caia se eu fizer algum mal com esta chave de fenda de meio metro. E, pelas virgens do profeta, esta é apenas minha coleção de estiletes, não são adagas!")

Dia do Fotógrafo: O Lobo Mau

Há também o fotógrafo LOBO MAU. Costumam aparecer em eventos discretos, como palestras e shows para poucas pessoas. Chegam mais paramentados do que padre em missa da semana santa. Colete de homem bomba, bolsas grandiosas, a câmera já na mão. E uma lente enorme. Fico pensando: o que é que ele está enquadrando com esta lente, assim tão de perto? Está tentando contar quantos cílios a cantora tem no olho esquerdo? Procurando uma marquinha de catapora?
Me dá vontade de chegar pertinho e perguntar com vozinha de Chapeuzinho Vermelho:
- Mas vovóóó... pra que uma lente tããão grande?

Dia do Fotógrafo: outros estereótipos

OS OBCECADOS. Alguns são pelo equipamento. Mal ouviram falar de um lançamento com um 0,0001 mp a mais e já estão atrás da BH fazendo sua encomenda. Me lembro de um que tinha sempre a Cannon mais nova, com duas dúzias de lentes. E um dia ele mesmo confessou que não sabia para que tudo aquilo, se na época o que ele estava fazendo era o passo a passo pra uma revista de ‘ponto em cruz’.
Outros são obcecados pela própria fotografia. Não falam outra coisa. Conheci um rapaz que estava começando a fotografar. Era namorado de uma amiga do meu namorado. Nos encontrávamos em festas de amigos em comum e passávamos a noite toda ‘conversando’. Na verdade, ninguém tinha paciência com o rapaz: ele até era gente boa, mas só falava de fotografia. Então meu namorado, que era fotógrafo, saía de fininho. A namorada dele também. E restava a mim, pessoa tolerante e generosa, ouvir o moçoilo monologar durante horas sobre todas as suas reflexões, dúvidas e pretensões com relação ao seu único assunto. Alguns anos depois, nos encontramos casualmente numa livraria e ele me contou que estava namorando uma bailarina. Me surpreendi de ouvi-lo pela primeira vez falar de outro assunto. Aí a conversa foi indo até ele contar que, então, agora estava fotogrando balé. Pois é.

OS ANGUSTIADOS: às vezes, a angústia é com a fotografia. Eles olham, olham... E pensam que poderia ter ficado melhor, que não souberam aproveitar bem a ocasião, que o editor não soube escolher, que a impressão ficou ruim... Outros se angustiam com a relação do fotógrafo com o objeto fotografado. O rapaz vai lá numa comunidadezinha distante e volta se sentindo um ladrão de almas, perguntando a si mesmo e ao resto do mundo qual foi a contrapartida social deste trabalho. Acham que podem usar a fotografia para mudar o mundo. Mas, no fundo, não usam. Apenas se angustiam. Outras já extrapolam: estão angustiados é com a vida mesmo. Fazem da fotografia sua forma de expressão porque precisam muito expressar seu próprio “eu”, sabe? Ok! Eles costumam ser pessoas do bem! Mas, cá entre nós, prefiro os mais felizes.

Também não tenho muita paciência com os MENINOS PRODÍGIOS. São criativos, ousados, antenados. Mas geralmente tem uma empáfia! Compreendo bem que alguém que já tem fama de bom profissional antes de completar 30 anos fique um pouco deslumbrado. Mas me lembro que, não sei quando nem onde, o Pedro Martinelli disse que só se considerou fotógrafo depois de 10 anos de profissão. Acredito que tenha mais relação com a postura que se adquire com a experiência do que com o resultado técnico-estético das fotos. O bom é que os jovens talentos, com o tempo, vão percebendo que há mais coisas entre a câmara escura e o fundo infinito do que julga sua vã sabedoria. E vão se tornando pessoas menos arrogantes e, portanto, mais simpáticas e interessantes (talvez por isto os meus preferidos sejam os mais velhos).

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dia do Fotógrafo: os 'Cotoveleiros'

De todos os fotógrafos que conheci, os piores, para mim, são os 'Cotoveleiros'. Incrível, eles parecem ter mais cotovelos do que olhos! Em qualquer evento, vão empurrando todo mundo com os braços abertos, como galinhas chamando os pintinhos pra debaixo da asa. Quase sempre têm também uma bolsa enorme, que balançam de um lado para outro para afastar os concorrentes. Estão sempre desesperados para conseguir um lugar melhor, para fazer uma foto melhor, para fazer o registro único num local nem um pouco exclusivo. Acho que nunca passou pela cabeça deles a palavra ‘cooperação’. O que os torna mais patéticos é que, na maioria das vezes, fazem esta cena desnecessariamente. E preocupam-se tanto em concorrer com os colegas que não percebem o que realmente está se passando. Uma vez, cobrindo um Agrishow Ribeirão, levei várias cotoveladas de um cara que queria fotografar o presidente Lula. Ia empurrando todo mundo e dizendo que era do "O Globo". Mas a verdade é que o Lula, que ainda não tinha decepcionado muita gente, ficou um bom tempo no palco, fazendo pose para as lentes. Ele é quem tinha chegado atrasado. Só conseguiu fotografar dona Marisa, na saída, conversando com um palhaço (palhaço mesmo, de cara pintada e nariz vermelho) que estava fazendo não sei o que naquela cena.
O pior é que, no ano seguinte, lá estava ele de novo (o fotógrafo, não o palhaço). Com uma mochila gigante e um novo item no equipamento: uma escada. Eu disse: uma es-ca-da! Para quem não sabe, o Agrishow Ribeirão Preto é maior feira de agronegócios da América Latina, um evento realmente grande, mas bem organizado, com horários marcados, discursos programados e acesso absolutamente livre para a imprensa, com dezenas de computadores a disposição e cominhos caprichados, com sucos, refrigerantes, saladas, massas e queijos cremosos com geléia de framboesa (um luxo). Sem contar os shows e os jantares nos melhores restaurantes da cidade, exclusivo para jornalistas (ô saudade!). E eu pergunto: para que o desespero? Para que passar na frente dos outros? Para que a pressa? E o que ele ia fazer com uma escada num local onde não havia necessidade de se ver de cima?Aliás, para ver de cima mesmo, fotógrafos tinham direito a vôos panôramicos de helicóptero. É sério. E se ele não abria mão disto, bastava usar uma mesinha ou pedir uma escada, com certeza não faltaria. Desta vez ele estava fotografando o infame Severino Cavalcanti, que na época era presidente da Câmara. Falou umas bobeiras, abraçou uma criancinha com síndrome de Down e foi solenemente ignorado pela imprensa. Se alguém fez foto dele, foi só pra constar. Quando acabou o discurso, o fotógrafo cotoveleiro parecia mais tranquilo. E me deu umas olhadas, meio em jeito de flerte (até que ele era ajeitado, sabe?). Como sou boa fisionomista, reconheci na hora o cotovelador do ano anterior. E passei direto, fingindo que não tinha notado a existência dele. Porque simplesmente não dá pra levar a sério alguém que vai do Rio de Janeiro a Ribeirão Preto carregando uma escada nas costas.

08 de janeiro: Dia do Fotógrafo

No início de 1996, pela primeira vez fui apresentada a um fotógrafo. Foi uma apresentação que coincidiu com minhas primeiras aulas de fotografia na faculdade. O que eu não sabia é que, daí por diante, não me livraria mais deles. Trabalhando, estudando, viajando, conversando, namorando, tuitando... eu já perdi a conta de quantos conheci: são catorze anos de convivência ininterrupta. Então acho que estou habilitada a falar sobre as minhas impressões sobre eles. Vou começar pelos mais chatos (prometo que depois falo dos legais).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Berinjelas?!

Hoje eu comprei uma berinjela pequena para fazer com molho de tomate e queijo, ao forno. Mas, já na hora de comprar, me lembrei de uma estória cabeluda. Minha irmã conhece uma pessoa, que tem um amigo que é dono de um motel. Aqui na grande São Paulo, perto de onde eu moro. E este amigo contou para esta pessoa, que contou para minha irmã, que contou para mim, que estou contando agora, que um cliente foi proibido de entrar no motel por causa das berinjelas. Pois é: berinjelas.
Era um cliente contumaz. Volta e meia aparecia por lá, cada vez (detalhe importante!) com uma acompanhante diferente. E, quando ia embora, o quarto estava repleto de berinjelas despedaçadas. Cansadas com a sujeira, as arrumadeiras se queixaram e os proprietários decidiram barrar o moço. Eu nem fiquei sabendo se elas estavam cruas ou cozidas. Grandes ou pequenas. Murchas ou rijas. Tampouco sei algo sobre o fulano ou suas variadas acompanhantes. Só sei que eram berinjelas.
A pergunta que me atormenta desde que eu soube desta estória é: o que este cara fazia com as berinjelas? Sei lá, se fossem pepinos, melancias, cenouras... mas, berinjelas? Estou lá no mercado comprando um singelo ingrediente para o almoço de amanhã e nem consigo escolher direito. Pego a primeira para não ficar pensando muito. Elas simplesmente perderam a inocência para mim. Não que eu tenha começado a sentir algum tipo de atração por berinjelas, além das já conhecidas gastronônicas. Apenas não sei conviver com um enigma tão grande.
Este tipo de dúvida me incomoda mais do que saber se há vida depois da morte. E, o pior, provavelmente eu nunca saiba...
Agora, se por acaso você for mais criativo do que eu e tiver alguma idéia do que se fazer num motel com berinjelas, me avise. Só por curiosidade.