terça-feira, 2 de março de 2010

No templo sagrado de Mindlin

Ele não chegou a notar minha existência. Mas eu notei a dele: nas duas oportundades que estive de estar perto de José Mindlim, fiquei quietinha observando sua figura peculiar.
A primeira vez foi numa semana Roseana, um evento que acontece todos os anos em Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa, na semana que seria de seu aniversário. Durante uma apresentação de teatro, em que um excelente ator conterrâneo de Rosa interpretava o texto de “Meu tio, o Iauaretê”, percebi uma movimentação exagerada das doutoras da Usp, sempre presentes ao evento. Autoras das mais complexas teses sobre a obra roseana, sorriam e se mexiam como mariposas em volta da lâmpada. De gentilezas em gentilezas, tentavam acomodar numa das cadeiras da platéia um homem idoso. Se o Guimarães Rosa não tivesse morrido há décadas, pensaria que era o próprio que viera receber as homenagens. Um pouco atrás, demorei para compreender o que estava acontecendo, quem era o visitante tão ilustre. Era José Mindlim.
Confesso que sabia quase nada e até hoje sei pouco sobre ele (descendente de judeus russos, empresário, contrário ao regime militar... bibliófilo).
Mas isto nao me impediu de ver a força que sua figura doce provocava. Na outra vez em que o vi, foi em sua própria biblioteca. Um jovem que estava fazendo sua tese de mestrado sobre a história de Robinson Crusoé solicitou a ele a autorização para incluir em seu trabalho uma foto do exemplar desta obra que Mindlim possuía, a mais antiga do Brasil. E ele, generosamente, autorizou que eu e o fotógrafo João Correia Filho fizessemos a tal foto. Para mim, que fui uma adolescente tão rebelde que matava aulas para me refugiar numa biblioteca, leitora compulsiva de todo tipo de livro que passasse em minha frente, aquele era muito mais do que um salão onde se guardam livros: era um templo. Não é uma coleção de livros qualquer, esta é a maior biblioteca particular do país e tem mais de 80 anos. Ficava em uma casa paulistana, toda cercada por um jardim de folhagens tropicais. E dois andares de livros, iluminados por vidros abertos para o jardim, com escadas de madeira e perfumados com o cheiro de papel raro. Ah, o cheiro da biblioteca do Mindlin! Fiquei ali parada, abismada com o meu próprio deslumbre.
Quem nos recebeu e entregou o livro foi sua secretária, que nos deu liberdade para trabalhar e circular pelo espaço. Montar tripé, escolher lente, ajeitar o livro, enquadrar, fotometrar... E eu imersa na sensação de estar num lugar sagrado, tocando aquele exemplar que chegava a assustar, de tão especial.
Então, ele chegou. Me lembrei na hora de uma entrevista que ele deu pra Regina Casé, em que dizia que as pessoas infantilizavam os velhos. Tinham o hábito de dizer que eles eram umas ‘gracinhas’. Lembrei e corrigi meus pensamentos: porque o Mindlin, sacerdote mor na sua igreja particular, era tão doce, tão suave, tão cheio de graça. Nos cumprimentou gentil sem saber o que minha timidez me impedia de dizer. E agora ele morreu. Um homem notável que se foi aos 95 anos, deixando um rastro de admiração, depois de ter dito que não era mais que um “guardião de livros”.
Os livros, doados para a Universidade de São Paulo, estão passando por um processo de digitalização para que fiquem a disposição também via internet. Mas sem a presença doce e sábia de Mindlin, perderam um pouco sua graça.