segunda-feira, 31 de maio de 2010

Robertina (ou mais uma estória de amor).

Robertina corria ladeira abaixo em direção à casa de uma família conhecida. Antes de chegar, porém, foi surpreendida com a presença de um rapaz. Sob uma grande árvore, ele retirava, com uma pá, porções de terra que jogava para o lado. Ela estacou em frente a ele, o olhou por um momento, e disse pausadamente:
- José Bittencourt, o que você está fazendo?
Interrompendo o trabalho, o rapaz respondeu:
- Estou construindo o caminho de nossas vidas.
Ela acordou em seguida, muito impressionada com o sonho, ouvindo o som de um motor longínquo. Chamou a mãe e perguntou que barulho era aquele, que ela nunca tinha ouvido. A mãe respondeu que era o caminhão dos Bittencourt.
Estamos sentadas uma em frente a outra, na cozinha. Ela tem um jeito sereno e enfático de falar e vai completando as idéias com gestos firmes, desenhando com o dedo indicador na toalha da mesa. Observo seu rosto já bem enrugado, seus olhos puxados, cabelos brancos apanhados num coque mal feito, seu ar de índia velha. No quarto, seu José. De regata branca puída e uma calça tão gasta quanto, ele brinca com a bisneta de seis anos, expressando o seu característico bom humor. Eles acabam de completar 60 anos de casados.
Na mesma semana em que sonhou com o noivo, Robertina o encontrou num baile. Nestes tempos, estes bailes da roça eram a principal atividade social para os jovens e muitos namoros começaram assim. Ela me contou que eles já se conheciam há muito tempo, mas que ele nunca tinha botado reparo nela. Neste dia, porém, ele disse ao irmão que estava cansado da vida de solteiro e que ia encontrar uma noiva no baile. Enquanto dançavam, ele pareceu notar pela primeira vez o encanto da moça de dezenove anos. Pediu-a em namoro. Ela, ao contrário, há muito esperava por esta oportunidade. Mas respondeu com astúcia feminina que era uma moça séria, não poderia dar uma resposta sem antes falar com a familia. A resposta? Somente no próximo baile.
Com um ar um tanto desgostoso, ela me conta que não foram décadas fáceis, que ele não foi exatamente um marido amoroso como ela gostaria. Muito séria, me confessa um segredo: houve um momento, até, com os filhos já crescidos, que ela chegou a juntar suas coisas para partir. Mas ficou. E foi construindo com José um caminho longo e sólido.
Há dois anos, liguei para sua casa, saudosa de me aproximar da sua sabedoria, sempre certa e tranqüila. É seu José quem atende. Me diz que é impossível falar com ela.
- A dona Robertina está no céu- me diz com um bom humor quase inadequado para a notícia.
Desligo o telefone sem me identificar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Maio

Zennoshin Shoji, 94 anos
Manaus, AM

Foi num mês de maio que Zennoshin Shoji conseguiu dar um dos maiores passos de sua vida: encontrou uma noiva. Uma proeza para quem pretendia partir do Japão para a Amazônia. Que pais aceitariam com facilidade deixar sua filha se casar e partir para tão longe? O jovem que alimentou desde a infância o sonho da imigração seguia os passos dos koutakusseis, grupo de estudantes de agricultura que se estabeleceram na região de Parintins, no Amazonas, na década de 30, cumprindo um acordo entre governos. Em 1937, enfrentou com bom ânimo os três meses de viagem, ao lado da esposa Tomoyo. Shoji, hoje com 92 anos, pisca muito os olhos e diz com seu bom humor característico: “Sabe, né?, casado novo, todo repleto e cheio de esperança, eu vim no navio namorando; era feliz demais apesar de ser imigrante!”.
Na província de Miagi-Ken, em Sendai, onde nasceu, a falta de recursos provavelmente o condenaria a uma vida de privações ou a emigração forçada para a Manchúria.
Mas quem disse que ele estava preparado para a lida na roça? Disposto a realizar seus sonhos, Shoji teve que aprender a carpir, plantar, colher. O foco inicial dos koutakusseis era a juta. A planta trazida da Índia, no entanto, não se adaptou com facilidade e foram precisos vários anos de pesquisa e trabalho até que, finalmente, ela se tornasse um negócio lucrativo e trouxesse grandeza para a colônia conhecida como Vila Amazônia. Escola, armazéns, templo e até hospital. Uma história de amor tão bonita quanto o casamento de Shoji se fazia entre Brasil e Japão, até que a segunda Guerra Mundial acabou com a Lua de Mel e tornou os dois paises inimigos. E os japoneses passaram a ser perseguidos. Muitos perderam bens. Muitos se perderam da família. Da Vila Amazônia, hoje restam poucas ruínas e o cemitério, onde muitos koutakusseis estão enterrados. Destes tempos, Shoji se lembra do dia em que apanhou de um policial com uma tira de couro de peixe. “Eu não entendia porque os soldados não gostavam de japonês, né?”.
Como se fizesse um balanço de sua própria vida, conclui que, apesar de todas as dificuldades, estava correto quando decidiu onde seus olhos rasgados veriam seus filhos crescer. Sentado em uma cadeira de trançado azul, enquanto dois cães brincam atrás da grade que nos deixa ver um quintal com palmeiras, seu Shoji mira o céu e busca palavras já prontas.Porque já sabe o que quer dizer, já sabe o que sente: “Eu sempre achei que a Amazônia fosse mesmo a minha terra”.