segunda-feira, 22 de novembro de 2010

No caminho

A senhora vem numa cadeira de rodas. Falta-lhe a perna direita, amputada na altura da coxa. A esquerda está enfaixada e sua pele é ainda mais escura que o resto do corpo marrom. Penso com certa aflição que em breve terá o mesmo destino. Quero observá-la enquanto se aproxima de mim, mas sua filha me fita e me acabrunho com a seriedade de seu olhar.
Por aqui passam vários cegos. Um, dois, três... Cada bengala é um terceiro olho. Ou talvez o único. De longe, atento para a ponta das bengalas, esperando o momento em que falharão e o cego trombará com o obstáculo. Sem me envergonhar desse pequeno sadismo, imagino que todos olhem esperando a mesma coisa. Um deles esbarra de frente com uma parede, só então me sinto constrangida.
Mulheres. Jalecos. Cabelos. Batons. Sapatoc... toc... toc...
Aquela foi uma noite de sábado. Pendurado no retrovisor, um esqueletinho de plástico prateado balança seus ossos. O taxista tem uma morenice quase índia. Junto essas duas referências e ensaio perguntar se ele é mexicano. Mas me calo. Na ponta oposta do banco, o homem dorme. Seu corpo é grande e macio. Não sinto, mas sei que seu cheiro é leve e claro, como sua pele chuviscada de sardas. Insisto comigo mesma que deveria falar com o taxista. Mas ele não é simpático e fico tímida.
Hoje, vejo os carros. Preto, prata, preto, prata, preto, prata. Por que tantos carros são pintados apenas com essas duas cores? À minha esquerda, um convento. Em alguma memória de infância, me dizem que nesse convento se produzem hóstias. Em alguma lembrança da juventude, lembro da amiga que dizia comer sobras de hóstias, que sua mãe ganhava das freiras, enquanto assistia à televisão. Rebarba, a palavra exata.
Até quando serei eu? Há um cansaço em ser para sempre a mesma pessoa. Tenho preguiça da eternidade.
Cobrindo o morro, muitas casas inacabadas se põem uma ao lado da outra e da outra e da outra. Aqui e ali, algumas - bem poucas - recebem o luxo de uma mão de tinta. Azul, amarelo, verde. Lembram-me uma prateleira de farmácia, lotada de pequenas caixas de remédio.
No livro italiano, o autor descrevia uma cena onde um casal passeia por uma praia. Não muito longe, se avistam pinheiros. Fiquei atenta às personagens, incapaz de visualizar o cenário. Pinheiros numa praia me parecem um absurdo excessivo para minha experiência tropical. Mergulho no quente escuro e é em um desses abismos de água que o homem me encontra.
O sol apenas insinua sua chegada quando ele acorda. Agora, quem dorme sou eu. Desperto quando sua mão alegre toca o couro elástico e escorregadio do meu quadril, ainda molhado e salgado de mar. As sereias, fora da água, pedem colo. Minha intolerância em pedir ajuda é tanta que, sem nem abrir ainda os olhos, desenho para mim longas pernas morenas, para que possa escapar quando quiser.
O que não posso é ser só mulher. Enfio ávidas mãos dentro de mim e trago o que primeiro encontro. Enquanto a mão alegre me passeia, minha boca se abre e não me surpreendo com os miados. Aninho-me no peito do homem e ronrono. Seu peito é grande e macio. E seu cheiro é leve e claro como sua pele chuviscada de sardas. Amanheço num domingo de primavera.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Sala da Luz Vermelha

Era uma vez um lugar quase mágico, onde imagens eram reveladas. Para chegar lá, passava-se por uma espécie de portal, abertura através de negras cortinas, muitas vezes em zigue e zague. Lá dentro, tudo era igual e, ao mesmo tempo, diferente. Sabíamos que ainda estávamos neste mundo, mas não podíamos vê-lo como tal. Para começar, a luz. No espaço escuro, a única luminosidade era vermelha, como uma lua colorada numa noite quente. E os cheiros! Eram fortes, marcantes, diferentes dos cheiros que nossos narizes encontram nas ruas: muitas pessoas achariam repugnantes os odores químicos que tomavam o lugar. Como deve ser o inferno, repleto de enxofre. Mas, como explicar? Quem entrava ali por vontade própria, já na primeira vez se sentia inebriado com aquele cheiro. Hoje, tantos anos depois, ainda tenho guardado em algum ponto prazeroso de minha memória os cheiros deste lugar. Uma mistura perfumada de produtos que se diluíam em água, nas proporções bem calculadas, para que as imagens aflorassem no tempo certo.
No local mais sagrado deste lugar, um altar invertido, estava um equipamento onde um pedaço de filme negativo era introduzido e uma luz – a única que não era vermelha- ampliava sobre um pedaço de papel fotossensível um desenho pouco compreensível para os intrusos. E o papel era mergulhado em bandejas recheadas de líquidos. Então, magicamente, ia surgindo pouco a pouco uma imagem positiva. Ah, a primeira vez que uma pessoa vê isto acontecer é incrível! Do fundo da água, em pontos escuros que vão se transformando em linhas e as linhas em sorrisos e olhares e composições... Na verdade, era sempre emocionante, fosse a primeira, a décima ou a milésima vez. E lá se iam uma hora, duas, três, oito horas esquecidas do mundo real... Eram sempre horas de magia. Eu disse magia? Não, este processo era pura técnica.
O tempo exato de a luz queimar o papel, o tempo exato no revelador, o tempo exato de interromper... Tudo calculado segundo a segundo: um relógio preciso era presença obrigatória. Se possível, um temporizador. Claro, muitas vezes as coisas não eram como se esperava. A pessoa batia os olhos numa cena, mas errava a exposição. No negativo, memória e registro não se bicavam. Hoje, um pouco de habilidade em programas de imagem resolvem bem este problema. Mas, lá na terra da luz vermelha, a habilidade morava no jeitinho de conduzir a luz sobre o papel. Com os dedos quase fechados, formando um túnel para a luz passar, como um jato direcionado, queimava-se as partes que deveriam ser queimadas. E poupavam-se as que deveriam ser poupadas. Ou se movia a mão escondendo um ou outro pedaço do papel. Sempre em movimento, para não ficarem marcas. Quantas imagens não foram salvas com estas máscaras! Mas não pense que era fácil. Era preciso ter experiência e fazer muitos testes até chegar ao ponto certo. Era preciso, acima de tudo, uma boa dose de sensibilidade e intuição para chegar lá. Também existiam os negativos com pouco contraste... Ah, é só ir clicando nas setinhas da esquerda onde se lê contraste, né? Não, meu filho. A sala da luz vermelha, apesar do nome parecido, não é o Lightroom. Era preciso calcular abertura e tempo de exposição, tempo de revelador e interruptor. Era preciso fazer tudo de novo. Também se podiam usar os filtros de contraste. Fosse como fosse, haja experiência, paciência e sensibilidade para chegar ao resultado ideal.
A fotografia digital tornou o processo completo – da captação à ampliação- muito mais acessível. E isto não significa que qualquer um consegue bons resultados. Experiência, sensibilidade, paciência e outras habilidades ainda determinam quem é de fato bom profissional. Mas o que me pergunto é onde ainda existem estes lugares incríveis, onde um sujeito de bem podia passar dias tão felizes na companhia das imagens? Faculdades? Laboratórios comerciais? No quartinho dos fundos de algum fotógrafo à moda antiga? Quem ainda tem um sagrado ampliador P&B, bandejas para a química e aquela peculiar lampadinha vermelha?
Não faço coro aos saudosistas. Mas sinto pena pelos mais jovens que já debutaram em câmeras digitais e não tiveram a oportunidade de aprender um pouco mais sobre o trato com a luz. A refotografia: quando fotografia era novamente feita, desta vez positiva e no papel. Ah, a luz vermelha, a magia das imagens surgindo... E, claro, o odor delicioso que só a mistura de revelador, fixador e interruptor podem produzir. Este odor grudento que ainda sinto cada vez que penso num laboratório de revelação P&B. Oras, quer saber? Eu sou, sim, uma saudosista.
.
.
.
Publicado originalmente no Fotocolagem. http://fotocolagem.blogspot.com/