terça-feira, 22 de novembro de 2011

Amor Perfeito

Narciso,

eu te glicínio muito, sabia?

Quando vejos seus lírios e gerânios, quando abre suas ninféias... Quando você vem, com essa sua dipladênia... Quando a gente se amarilis. Eu me margarido toda! Às vezes você é tão girassol, que chega a parecer tulipa. Outras vezes você é dália, outras helicônea. E outras, ainda – ah,outras!- você é só antúrio. Deixa um jacinto na boca-de-leão.

Tentei resistir, mas quando vi, já era malva. Orquideei-me numa dama-da-noite. É, foi rosa. Mas se miosótis petúnia, rodáquea gloxícina, né? O importante é que você me violeta de prímula, mesmo quando está cravo. Eu: sempre-viva!

Mas chega dessa ipoméia e voltemos ao lótus: eu só queria dizer que te glicínio muito.

Beijo,

Maria-sem-vergonha

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dicionário

“O amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto”. É o que diz Chico Buarque no prefácio da reedição do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo ( http://www.lexikon.com.br/dicionario_analogico/dicionarioanalogico.html ).Um dicionário para ser usado especialmente naqueles momentos em que, como me explicou um amigo, “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”.
Lendo isso, lembrei que era louca por dicionários quando era criança. Em casa tínhamos um bem grande, de capa toda preta, herança do avô José, o corretíssimo pai de meu pai. O que dá uma ideia de sua velhice, já que meu avô nasceu em algum ano do século XIX. A ordem familiar era de que ele não deveria passear em minhas mãos. Era um livro importante, sério. Mas como se pode negar a uma criança o direito de aprender? Então eu podia pegá-lo, sempre com rigoroso cuidado.
Claro que em pouco tempo ninguém mais me vigiava e, quando sozinha, escorregava o catatau para fora de seu lugar entre os outros livros e gastava muito tempo me deliciando com esse prazer infantil.
Foi lá que aprendi que masturbação é uma forma de ter prazer físico sozinho. E desconfiei, imediatamente, do que se tratava (não dizia nada sobre o uso das mãos, por isso sempre acho estranho quando alguém diz que masturbou o outro. Como assim? Não era pra ser sozinho, cazzo?). Depois de tanta escorregadas, começou a se desfazer. A encadernação foi ficando bamba, os cantos da capa dura amassados por batidas, as páginas cada vez mais amareladas.
Mas dureza mesma foi o dia em que meu irmão mais velho me declarou, eu já adolescente, para meu espanto e decepção, que aquele não era um bom dicionário. Esbarrei no susto. O que é isso? Um dicionário que não é bom? Então ele me explicou, do seu jeito sempre... Sempre o que mesmo? Pois é, estou num daqueles momentos em que “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”. Explicou do seu jeito de sempre de irmão mais velho, que seja, que ele estava desatualizado, que os dicionários mais novos tinham mais verbetes, com explicações mais complexas.
Daí em diante, parte do encanto do dicionário velho da capa preta se perdeu. Mas apenas porque soube que ele já não era tão confiável como eu supunha – e eu o supunha a coisa mais confiável que existia no mundo, oras!- mas continuou sendo o livro mais cobiçado da estante da minha mãe. Que, cá entre nós, não tinha mesmo nada que preste.
E agora, três décadas depois, me pego aqui um tanto besta pensando por que, afinal, esse dicionário ainda está lá. A estante já é outra, os livros são outros, a necessidade é outra. No meio de um monte de tranqueiras, quinquilharias, coiseiras e, em minha opinião, lixo a ser reciclado, o pobre se esconde.
Enfim, decidi enquanto escrevia este textinho: vou furtá-lo. Num dia qualquer, em que minha mãe se encontre distraída, vou transferi-lo para o meu armário de livros, onde poderá ficar na companhia agradável de Victor Hugo, Jorge Amado e João, o Rosa. Num dia qualquer, quando estiver cansada de viver do lado de fora, vou pegá-lo novamente e caminhar na sua luz amarela, respirar seu cheiro de livro muito velho. Prazeres de criança.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Bagagem

Uma roupa de frio. Uma calcinha rendada. Rímel, lápis, batom, esmalte. Escova de dentes, pente, remédios. Camisinhas.
Levo um fígado limpo, desabituado de álcool. Um tanto de insônia, se faz necessário. Para o pulmão, uma dose extra de tolerância ao tabaco.
Não posso deixar de levar uma muda de voz, ainda que desafinada, para em dueto cantar ‘Vida Noturna’, ou outras pérolas de Aldir.
E um par de ouvidos bem atentos, para a hora da leitura. Mãos, levo várias: há corpo demais para passear as pontas dos dedos. Sorrisos às pencas, que usarei todos. E olhos de olhar nos verdes incompletos de outros olhos.
Poesia eu nunca sei: levo da minha ou uso a que tanto sobra por lá? (Mas é tão leve, oras, não custa levar).
Já ciúme eu não levo, que é peso demais, eu não vou aguentar. Também deixo de fora algumas más histórias, mal humores, má vontade (esta eu nem tenho para levar). Ignorância, porém, não posso deixar: sou muito apegada a ela.
Aperto tudo isto no fundo da mala para sobrar mais espaço: há muita vontade de conhecer, que eu preciso levar. E um enorme desejo de estar junto que, de tão grande, preciso dobrar.
Embalo também um tantinho de espanto, um bocadinho de medo, um tiquinho de dúvida. Mas deixo bem embrulhados para que não se derramem e manchem as outras coisas.
No espaço que sobra – e bem sobra porque a mala é grande- coloco desejo. Mas, ora, veja só: não é que no começo da semana, era de menor tamanho? Como cresce tanto, em tão poucos dias? Faço um esforço para que caiba todo. Senão, alguma coisa vou ter que tirar! Desejo só vai inteiro, não se pode cortar. Aperto, empurro, desarrumo, arranjo, desfaço, refaço. Ufa! Coube.
Na hora de sair, ainda me lembro do pouco de encanto, que eu queria ofertar. Não cabe na mala. E solto, posso perder...
Me olho no espelho e vejo: tenho sapatos adequados, de saltos bem altos para alcançar o beijo. E roupas práticas, fáceis de tirar. Também um colar, para me proteger. E um anel, que tenciono esquecer.
Então, por cima de tudo, visto o encanto.
E vou.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O que tem para comer?

No blog do Pedro Martinelli ( http://www.pedromartinelli.com.br/blog ), li um texto em que ele falava de uma jovem repórter que, em uma viagem, queria comer alguma coisa mais leve, com uma saladinha, um iogurte talvez . Ele foi falando e soltando uma ironia levezinha por trás da estória. Cheguei a ver, por trás de sua barba, o sorrisinho subindo para o lado esquerdo do rosto. E eu não pude deixar de rir da ingenuidade da moça que, como ele disse, era “novata no trecho”. Jornalista viajando lá pode escolher comida? Pode não.

Fiquei pensando se esta moça estivesse em algumas situações que vivi. Não que eu sempre coma mal quando viajo a trabalho ( tem um hotelzinho em Belém do Pará, de nome começado com Z - Zogbi?Zíngara? - que serve um peixe incrível e que tem de sobremesa um divino creme de cupuaçu, para se comer ajoelhado. Jesus, Maria, José!). Mas, enfim, eu estava falando dos perrengues.

Os piores passei em Minas Gerais. Justo lá, onde está a minha comida preferida! Lembro especialmente de uma viagem pelo Vale do Jequitinhonha, na companhia de uma repórter e de um fotógrafo, fazendo uma matéria sobre cerâmica. Indo de uma cidade a outra acabamos chegando à hora do almoço numa beira de estrada. A cidade mais próxima, onde havia de ter algo de bom, nos afastaria demais do rumo. O jeito foi parar num barzinho. No balcão, agasalhado por uma estufa de vidro, um cozido de mandioca. Eu não vi, mas quem viu me disse: estava “verde”. Mas não é que eu carregava nas minhas tralhas um teco de queijo, comprado em algum sítio do caminho, que eu vinha comendo aos pouquinhos? Almoço para três num dia cheio de trabalho: meio queijo minas e guaraná Antártica. No dia seguinte, já chegando nos finalmentes do Jequitinhonha, caminho para Santana do Araçuaí, foi pior.

Na única portinha aberta, num sem fim de estrada, esbarramos. Era um lugarzinho dos menores, pouco iluminado e com cara de mal limpo. No balcão, algumas coxinhas. Do lado de lá do balcão, um senhor olhou meio torto e soltou, numa voz desanimadora: “São de ontem. Não devem estar boas...”
Uai, se o dono diz, como discordar? Tem alguma outra coisa pra comer? Tinha: paçoquinha. Almoço para três nm dia cheio de trabalho: paçoquinha e coca-cola.

Também em Minas, no Parque Nacional “Grande Sertão: Veredas”, difícil foi escapar da paçoca de carne seca da dona Nica. Passávamos pela casinha de adobe e dona Nica gentil nos convidava. Eu me esquivava daqui, me esquivava dali. Até que, numa noite, já ficando chata a recusa de tão insistente, não houve como escapar. E ela trouxe uma tigelinha recheada e uma garrafa de café.
Não que haja algo de errado com paçoca de carne seca: é um prato tradicional e saboroso. Mas, não bastasse eu não ser lá muito chegada em carne seca, já estava há dias vendo as mantas de carne penduradas nas portas das casas, de frente para as ruas. Passa boi, passa boiada, cavalo, gente e cachorro... a carne ali, como roupa no quarador, secando ao sol roseano, banhando-se de poeira vermelha do sertão. Não dava para encarar. Protegida do escuro da casinha, iluminada por uma fraca lamparina, eu apenas fingia que comia. Batia a colher na tigela para fazer barulho, levava-a próxima à boca e devolvia ao seu lugar. Mas o fotógrafo que estava comigo, João Correia Filho, era do tipo avestruz. Além de bom de garfo, gostava do prato. Como a tigelinha era para nós dois, eu contava que ele comeria a parte dele e a minha também. E continuei com meu teatrinho.
Nem o café eu tomei todo, que era ruim demais da conta. Só mais tarde, já afastados dos ouvidos de dona Nica, que apesar de mal cozinheira era um amor de pessoa, confessei o meu embuste. E por pouco não apanhei: o “bom de garfo”, por mais bom de garfo que fosse, também se lembrou das carnes penduradas. E foi com esforço que comeu, tentando entender porque é que não acabava nunca a bendita paçoca!

Mas eu levei tudo isto numa boa. Perrengue mesmo passei no Pará. Em Afuá, no Marajó, simplesmente não se achava café. Sim, café, este líquido precioso e indispensável para sobrevivência humana. Não que os afuaenses não tomassem café. Eles só não vendiam. Na padaria: acabou. Mas são nove horas da manhã! Mas acabou. Outra padaria: ah, aqui só temos pão. Era final de tarde e a vida já estava se tornando insuportável quando, enfim, numa lanchonete caseira, a dona me disse:
- Ter, não tem. Mas, se você quiser, posso fazer.
Ufa! Sorri agradecida, lembrando como é bom quando estamos fora de casa e conseguimos não passar por privações.

Por estas e outras, fico pensando na repórter, parceira de viagem do Pedro Martinelli. Iogurte? Saladinha? Minha filha, dieta se faz em casa. Na rua, se encontrar comida, agradeça e peça a Nossa Senhora do Desterro que te proteja da salmonela e companhia. E bom apetite!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Juan Rulfo




Era um bar instalado nos fundos de um estacionamento, num imóvel meio caindo e mobiliário mais descombinado que de república estudantil. Mas com muitas opções de cervejas de nomes impronunciáveis, aprisionadas em garrafas pequenas e preços grandes. Enfim, um pouco daquele pedantismo paulistano, que oscila entre pretensão e charme. Para ficar ainda mais charmoso – e pretensioso – só tocava jazz.

E eu nem ouvia a música, nem bebia cerveja: estava ocupada demais com o pesado embrulho de presente em minhas mãos. Era óbvio que era um livro. Mas qual? Eu intencionalmente não abria. Queria prolongar aquela sensação gostosa de ansiedade, antes que a curiosidade falasse mais alto.

Quando abri, abri devagarinho. Na parte de baixo da capa, vislumbrei as palavras Juan Rulfo. Fechei correndo. Juan Rulfo? O livro “100 fotografias”, de Juan Rulfo? Precisei de alguns segundos antes de ter coragem de abrir novamente e confirmar.

Uma semana antes eu tinha lido um texto de outro Juan, o Esteves, sobre esse livro. E o desejei com tanta força que nem ousei desejá-lo. Sabe como é? Quando uma coisa é tão especial que a gente humildemente nem se atreve a querer? Foi assim. Só que eu mandei esse texto para uma pessoa muito querida (juro que não foi uma indireta). Que dias depois entrou numa livraria para comprar um presente de aniversário para um amigo. E o livro estava lá, todo exibido. Agora está aqui, ora nas minhas mãos, ora na mesinha da sala (Helena, se você encostar um dedo nesse livro, se amassar, sujar ou qualquer coisa assim, o bicho vai pegar!).

Eu e o Juan Rulfo fomos apresentados há pouco mais de um ano. Um ano e dois meses, para ser exata. Quero dizer, ele foi apresentado a mim, porque duvido muito que ele saiba quem eu sou. Foi um presente também, um pacotinho que chegou pelo correio, enviado de Florianópolis por um amigo querido com quem compartilho meu apego por livros (a misantropia é uma bobagem: o que mais vale nessa vida é a presença de pessoas queridas). Mas não era um livro de fotos, era o romance “Pedro Páramo”. E eu nem sabia – nem havia nenhum comentário no livro, nem meu amigo me disse – que o autor era também fotógrafo. Foi pesquisando sua obra literária que fiquei sabendo, com o comentário contundente de Susan Sontag: “É o melhor fotógrafo que conheci na América Latina”.

Se ela disse, quem sou eu para discordar? Foi o meu fotógrafo do ano. Comecei a pesquisar imagens e textos sobre ele. A última coisa que vi foi justamente a crítica de Juan Esteves, publicado no blog do Paraty em Foco, sobre o livro que foi lançado em dezembro de 2010 pela Cosac Naify e é uma homenagem ao fotógrafo. São, obviamente, cem fotografias, com praticamente todas as temáticas que ele abordou (de fora ficaram apenas as fotos de dança) e que fazem uma espécie de resumo de seu trabalho fotográfico.

Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno nasceu no México em 1917 e passou toda a infância e adolescência no interior do país. E foi nesse o espaço em que viveram também seus personagens, os criados pelas palavras e os criados pelas imagens. Apesar de ser considerado por muitos críticos como o maior escritor mexicano e um dos maiores do continente, Rulfo assumia a autoria de apenas dois livros: os contos de “Chão em Chamas” e o romance “Pedro Páramo”, publicados em 1953 e 55. Na década de 60, “O Galo de Ouro”, com textos que ele escreveu para cinema, foi publicado por insistência de seu amigo Vicente Rojo. Já o fotógrafo Juan Rulfo parece ter nascido bem mais tarde.

Apesar de suas fotos terem sido publicadas já na década de 40, na revista América, ele só foi reconhecido como fotógrafo quando aconteceu a exposição Homenaje Nacional, no Palacio de Bellas Artes, na Cidade do México. Três anos depois, 96 imagens da exposição se transformaram no livro “Inframundo”. Depois vieram “México, Juan Rulfo Fotógrafo”, “Juan Rulfo, letras e imágenes” e “Juan Rulfo”, todos lançados a partir de 2001.

É claro que as duas coisas, fotografia e literatura, estão sempre sendo comparadas. Há os que procuram as similaridades. E os que procuram as diferenças. Os que acreditam que ele escrevia para expressar o que não cabia nas fotos. E os que acham que ele fotografava para completar com imagens suas histórias. Mas Victor Jimenez, curador do livro “100 fotografias”, encerra a questão: “os dois conjuntos de obra que Rulfo nos legou não podem ser vistos em separado ou como complementares. São, ao fim e ao cabo, uma coisa só”. Pensando dessa forma, o melhor parece ser deixar o livro de fotos junto com o romance “Pedro Páramo”, no meu armário de livros.

É um velho armário fechado com portas de vidro, onde protejo da fúria tsunâmica de minha filha de cinco anos alguns objetos preciosos. Estão lá minhas velhas câmeras analógicas, duas cumbucas feitas pelos índios Assurini, do Pará, uma miniatura em cerâmica de uma peça arqueológica Maracá, um cartaz enrolado do Museu de Arqueologia e Etnologia de São Paulo, um exemplar de “Amazônia Antiga”. Além de vários livros mesmo, já que é para isso que se presta um armário de livros. Pierre Verger, Roger Bastide, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Gabriel García Marquez, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Joyce, Cortázar, Borges, Hemingway, uma fração da coleção rubra e doirada “Os Imortais da Literatura Universal”, além de um monte de porcarias, das quais não me desfaço porque sou apegada a livros, mesmo aos ruins. Tenho até a “Moderna Enciclopédia Sexual”, publicada na década de 60, quando o divórcio ainda “deveria ser incluído na legislação brasileira”. Nesse armário de livros ganhos, esquecidos e, confesso nem um pouco envergonhada, furtados, ele estaria a salvo. E em boa companhia.

Mas eu ainda estou no processo de encantamento, daqueles bobinhos que temos em começos de namoro. Quero que ele fique ao alcance das minhas mãos. A qualquer momento do dia, posso pegá-lo e passear os olhos pelas fotos. Ou ler um dos vários textos. Ou simplesmente deslizar a mão pela capa, para evitar que qualquer poeirinha o incomode. Além do mais, minha filha já vai fazer cinco anos, está na hora de aprender a respeitar as coisas sagradas. E ela já sabe o que acontecerá se causar algum dano ao meu livro:

- Não sabe, Helena?

- Sei, mãe, a coisa vai ficar feia po meu lado!